Doce
         O que corre em nossas veias
possui uma combinação surpreendente. Por mais enganoso que seja pensar numa
mistura homogênea, esse líquido é perfeitamente dividido, mesmo sendo tão
uniforme a olho nu. 
            A concepção do que é doce
assemelha-se ao que é belo. É algo que parte do subjetivo, ou seja, é algo que
está fora do entendimento de qualquer intelectual, afinal, o sentimento em si
se torna indescritível e incompreensível, apenas sensível. O doce, de uma
maneira geral, está relacionado ao açúcar, um dos maiores inimigos e amigos
daqueles que adoram passar boas horas desfrutando de industrializados. Porém,
quero trazer a você, leitor, que o doce pode se tornar amargo em um momento
súbito, entretanto, o sabor se torna maravilhoso e extremamente prazeroso.
Portanto, contextualizemos.
Em um vasto espaço, ou melhor, em
um mundo paralelo, podemos identificar coisas que nós, seres humanos, temos
mais afinidade quanto ao nosso gosto - uma das coisas mais variáveis que
existem em nossas mentes tão lúcidas e férteis. Entretanto, pode haver coisas
que não nos agradam, tudo pelo fato que as nossas decisões nos fizeram aceitar
o nosso destino. Infelizmente somos muito imaturos para perceber o verdadeiro
propósito de estar ali, todos os dias, olhando para as mesmas pessoas e dizendo
para si mesmo que poderia melhorar as relações, mas não que possui atitude para
isso.
            Não é novidade que esse tipo de
coisa passa pela mente das pessoas, mesmo que despercebidamente. De uma forma
prática, esse mundo paralelo veio a tomar forma em nosso tão monótono mundo
real, sim, estou falando da internet. O que é mais sublime do que isso para
pessoas que sonham fugir da realidade? São fatos dos quais não se podem
escapar. A consciência humana possui uma queda (no sentido de afinidade) para
as coisas que a conforta. Em adolescentes é a coisa mais comum e considerada
normal para aqueles que não tiveram a oportunidade de debruçar o seu semblante
sobre uma tela que nada tem a oferecer, a não ser que pressionemos o botão
“pesquisar” sobre os nossos desejos momentâneos e fúteis. 
            Clarisse, uma jovem de dezesseis
anos, é do tipo que adora manter disparidades no meio em que vive. De
inteligência aguçada e com bons instintos, podemos dizer de primeiro plano que
ela não possui problemas consigo mesma. Entretanto, é justamente a busca pela
perfeição que torna o caminho da vida mais espinhoso, pois demanda sabedoria,
mas, sobretudo experiência. Por esses e outros motivos que não quero detalhar,
Clarisse não possui muitas amigas, apenas a quantidade que ela acha necessária
para se manter em paz quando quer ficar sozinha, o que acontece com frequência.
            Nossa heroína é o tipo de pessoa que
busca constantemente as famosas “válvulas de escape” que a sociedade propõe. E
como já foi dito, a web não deixa de exercer um papel importantíssimo para
isso. É um lugar propício para o anonimato, onde o seu rosto não precisa ser
exposto quando há algo entalado na garganta e que você sente a necessidade de
liberar, seja sobre um vídeo, um comentário, um artigo em um blog ou sobre uma
pessoa que você não gostaria de encontrar para falar aquilo que pensa.
            Clarisse participava frequentemente
de redes sociais, porém não gostava de tirar fotos e exibir para as pessoas.
Não considerava isso como medo de ser pretensiosa, mas simplesmente por não
gostar disso. Possuía apenas um rostinho amarelo com duas pintinhas para serem
os olhos e uma curva para cima para representar um sorriso. De maneira
recorrente, as pessoas chamam esse tipo de imagem de “emoticon”. Ela conversava em bate-papos com as pessoas e,
logicamente, as pessoas insistiam e ver o seu rosto. Clarisse conversava muito
bem e fluentemente, o que não era diferente online. 
            Certo dia, Clarisse encontrava-se
sentada no primeiro degrau da escada que dava acesso à porta dos fundos, do
lado de fora da casa. Observava o jardim coberto pelas borboletas que pairavam
sobre a relva baixa, de onde emanava um frescor revigorante e de certa forma
alegre. Direcionou os seus olhos azuis para a árvore que se localizava ao fundo
do cenário, bem a sua frente, tentando decifrar a cena que jamais sairia de sua
cabeça. 
            Era apenas um pequeno canário,
liberto recentemente por um de seus vizinhos que adorava pássaros e que os
acolhia para alimentá-los e logo depois retirá-los do cativeiro. Ele bicava as
asas, de modo que limpasse a sujeira acumulada após alguns dias, porém as asas
estavam negras demais para ser uma sujeira normal. Clarisse aproximou-se
lentamente, de modo que não assustasse o pequeno animal.
            O canário parou de movimentar-se,
focando seus olhos miúdos para o horizonte do céu que ele não teria mais
oportunidade de cruzar. Seu canto cessou e as assas caíram em um tronco
qualquer, denunciando a causa óbvia de sua morte e o seu assassino: um mundo
que não possui misericórdia para aqueles que não suportam viver com o que ele
defeca a todo segundo. A arma do crime: o consumo daqueles que amam o mundo.
            O fato de que tal cena não saía da
mente de Clarisse não era o horror de ver um animal inocente morrer por sua
causa, e sim o próprio fato de ter contribuído para matá-lo. Para ela, matar
alguém era maior ato de amor que era possível de ser realizado, um alívio para
quem a recebe. A morte do canário comprovou isso. Era apenas mais um conceito
destrutivo, porém, um dos mais sensatos que se pode ter.
 
 
Nenhum comentário:
Postar um comentário