Felizmente existem seres em nosso
planeta que sempre pensam no passado antes de agir. Aquele momento em que a
raiva toma conta do raciocínio pacífico, facilmente é driblado pelo
autocontrole, dependente do que aprendemos em experiências passadas. Aquele momento
de crise, quando as expectativas para o futuro recebem um abalo inesperado,
basta olhar para si mesmo e considerar aquilo que pode te fazer evoluir,
descartando de imediato tudo aquilo que nos trava por dentro.
O processo de aprender a olhar para
o passado nos ajuda bastante no autoconhecimento, sempre nos dizendo que temos
algo à frente, por mais que o passado contenha fatos, momentos, situações que
nos fizeram tropeçar. Escrevo esse texto não apenas para refletir sobre a
paciência ou algo parecido, mas sim para relatar uma experiência que tive com
certa pessoa.
Acontece que eu estava sentado em um
banco de praça, porém eu não estava em praça alguma. Era um lugar bastante
vazio, tudo que eu conseguia enxergar eram muros bem altos e pintados de
branco, dentro de uma construção semelhante a um edifício, mas sem janelas,
apenas as paredes brancas. Eu não estava necessariamente preso, pois havia uma
porta de aço entreaberta bem à minha frente.
Para passar o tempo eu dispunha de
alguns livros didáticos. Da física à literatura eu me deliciava com os
conceitos e exercícios, nem mesmo tendo vontade de olhar para a porta de aço para
ver se alguém estava entrando. O lugar era bastante silencioso, o que me
deixava completamente envolvido pela leitura. Dificilmente algum ruído
desviaria minha atenção, mas no máximo eu escutaria e não me importaria.
Pude perceber que a porta de aço
estava abrindo mais espaço, seguida de pés e mãos que empurravam com bastante
esforço. Não me importei muito. Após abrir o suficiente, os passos daquela
pessoa começaram a tomar outra direção, a caminho da pilha de livros didáticos.
Continuei minha leitura sobre o movimento pós-moderno.
O banco no qual eu estava sentado
tinha espaço suficiente para mais uma pessoa sentar e ler confortavelmente. Aquela
pessoa que parou na pilha de livros por alguns minutos finalmente escolheu um
livro. Como o único assento disponível era o banco da praça, imaginei que
aquela pessoa não iria sentar no chão, apesar de estar impecavelmente limpo. Não
olhei, mas os passos começaram a vir na minha direção.
Essa pessoa começou a folhear seu
livro, como se tivesse colocado um marca-páginas antes de estar ali do meu
lado. Assim como eu, a sua leitura estava profundamente focada, até me senti
ignorado naquele momento. Enquanto líamos, lado-a-lado, o que menos espero
acontece: mais pessoas começaram a entrar na edificação. Um grupo de trinta
pessoas, algumas mais extrovertidas, outras introvertidas demais, tanto que
voltavam para fora da edificação assim que chegavam.
Dois terços dessas pessoas se
dirigiram à pilha de livros, o restante preferiu sentar em círculo e começaram
a conversar entre si sobre os mais variados assuntos, de música popular à vida
pessoal e sentimental de cada um. Aqueles que pegaram livros também sentaram em
círculo. Alguns puxaram canetas dos bolsos e iniciaram as listas de exercícios,
outros apenas liam.
Parecia que tudo permaneceria
daquela forma, mas de repente eu escuto uma voz em tom de chamamento:
_Ei cara! Disse um rapaz de boné.
Levantei a cabeça e fiquei em
dúvida:
_É comigo? Respondi.
_É tu mesmo! Chega mais, vem ler com
a gente!
Surpreendi-me, pois sempre me
mantive no banco. Quis experimentar a leitura em grupo, então pela primeira vez
eu me levantei e levei meu livro de literatura.
O rapaz de boné me perguntou assim
que sentei ao lado dele:
_O que você está lendo, cara?
_Isso aqui é um livro sobre os
movimentos literários brasileiros. E você, o que está lendo?
_Ah não se preocupe. É só um dever
de matemática que o professor passou. Mas então quer dizer que você gosta de
literatura, né? Se eu fosse tu, eu ajudava aquela garota ali.
O rapaz apontou para uma moça bem
magrinha, cabelos negros e óculos de grau. Imaginei que ela tinha alguma
dificuldade com o conteúdo de literatura, então humildemente me dirigi até ela.
Quando sentei ao seu lado, rapidamente ela desviou o olhar para a capa do livro
que eu estava segurando:
_”Iniciação à literatura”. Disse
ela, sem ao menos olhar para minha cara.
_É isso mesmo. O rapaz de boné de
disse que era pra eu te aju...
Ela me interrompeu.
_Esse é um livro bastante
desatualizado, a julgar pelo autor do livro. A maioria desses livros didáticos é
produzida com muita subjetividade, principalmente quando se trata de assuntos
tão variáveis no quesito interpretação. Por isso prefiro ler diretamente os
livros, ao invés de pegar pontos de vista de pessoas completamente
tendenciosas.
Esperei a garota terminar de falar e
olhei para o rapaz de boné. Ele estava morrendo de rir.
_Pelo que eu estou vendo, você não
tem dúvida alguma sobre o assunto, né?
_É, acho que por agora não. Mas se
você quiser sentar aí, fique à vontade. Disse a garota, voltado a ler.
Quando reabri o livro, não consegui
retornar à mesma concentração. A única coisa que eu conseguia fazer era olhar
para aqueles que estavam à minha volta. Eram pessoas com intenções tão
diferentes que qualquer pessoa diria que não se conheciam, mas entre leituras e
rabiscos de lápis havia conversa. Era uma conversa sincera e carregada de respeito,
por mais que houvesse muitas brincadeiras.
Parecia que algo estava para mudar
naquele lugar vazio. Acho que um dos elementos mais transformadores que
existem, além da própria natureza, é o fato de existir calor humano. Nos momentos
em que eu estava sozinho com os livros, eu sentia que faltava algo para que eu pudesse
sentir-me completo. Ao sentar naquele círculo tão receptivo, finalmente
encontrei a resposta.
Sem perceber, meus olhos estavam
fechados e tudo se tornou escuro. Como se uma lança afiadíssima passasse pelo
meu estômago, senti uma dor indescritível, entretanto não consegui abrir os
olhos ainda. Havia apenas escuridão, dor e gritos.
Finalmente abri os olhos. A dor
parecia ter aumentado e pude ver o ferimento grave abaixo do meu diafragma. Não
sei como fiz isso, mas minhas mãos estavam cobertas de sangue e tive a sensação
de ter enterrado minhas mãos em algum lugar. Meu corpo estava todo contraído,
meus joelhos encostando-se a meu peito, numa tentativa frustrada de parar os
sangramentos e reduzir os gritos.
Após alguns minutos eu consegui
alcançar o silêncio. Minha mente estava muito confusa, num misto de
incompreensão e raciocínio rápido demais. Creio que esse seja o resultado de
misturar adrenalina com a dor. Todas as pessoas que estava no lugar haviam
desaparecido, o que aumentou a minha distorção da realidade. Os livros, todos
empilhados e organizados.
Numa pintura de vermelho sobre
branco, meus olhos começaram a fechar pela última vez e para todo o sempre. Aquela
pessoa ainda estava no banco, folheando seu livro.
No escuro, meus pulmões ainda
liberavam ar, o que me deixava angustiado, pois não sabia em que momento meus
órgãos cessariam as funções. Senti vibrações em meus ouvidos. Passos em minha
direção aumentou meu nervosismo. Tive a sensação de que aquela pessoa diria
alguma coisa, mas não disse.
Ela tocou na minha barriga, sujando
as mãos de sangue. Inclinou seus lábios ao meu ouvido e pude sentir sua
respiração ecoando pelos meus sentidos:
_Psiu! Assopra que sara!
Aquelas palavras funcionaram como um
desfibrilador. Rapidamente me coloquei sentado. Assustado com o impulso, apoiei
minhas mãos no chão e para a minha surpresa o sangue não estava mais lá.
Girei meu pescoço para ver se
encontrava aquela pessoa. Porém a porta de aço havia se fechado e eu estava só
novamente. O que restou foram os livros, e para a minha surpresa o livros que
aquela pessoa estava lendo se encontrava no banco de praça.
A curiosidade foi mais forte. Na capa
de livro estava escrito “Bíblia Sagrada”. Também havia um bilhete com a
seguinte mensagem:
“Não
se preocupe com aquilo que você deixou de fazer, o que importa é aquilo que
você fez de bom até esse momento.”
Olhei um pouco mais abaixo e vi quem
tinha escrito:
“De
sua amiga, Sara!”.
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