quarta-feira, 29 de julho de 2015

Assopra que Sara! (29/07/2015)




        
    Definitivamente não sabemos quando o destino reserva surpresas, afinal nós também não temos controle do presente. Entretanto, o passado torna-se o principal referencial para as nossas atitudes no futuro, apesar da importância de não deixar o passado sobrepor os nossos pensamentos no presente. Enfim, afirmações como essas podem parecer óbvias demais, porém quando agimos antes de pensar – que por sinal acontece com muita frequência – raramente consideramos alguma coisa do passado, seja um aviso que recebemos de alguém ou de algo fato que deveria ter sido um divisor de águas em nossas vidas.
            Felizmente existem seres em nosso planeta que sempre pensam no passado antes de agir. Aquele momento em que a raiva toma conta do raciocínio pacífico, facilmente é driblado pelo autocontrole, dependente do que aprendemos em experiências passadas. Aquele momento de crise, quando as expectativas para o futuro recebem um abalo inesperado, basta olhar para si mesmo e considerar aquilo que pode te fazer evoluir, descartando de imediato tudo aquilo que nos trava por dentro.
       O processo de aprender a olhar para o passado nos ajuda bastante no autoconhecimento, sempre nos dizendo que temos algo à frente, por mais que o passado contenha fatos, momentos, situações que nos fizeram tropeçar. Escrevo esse texto não apenas para refletir sobre a paciência ou algo parecido, mas sim para relatar uma experiência que tive com certa pessoa.
            Acontece que eu estava sentado em um banco de praça, porém eu não estava em praça alguma. Era um lugar bastante vazio, tudo que eu conseguia enxergar eram muros bem altos e pintados de branco, dentro de uma construção semelhante a um edifício, mas sem janelas, apenas as paredes brancas. Eu não estava necessariamente preso, pois havia uma porta de aço entreaberta bem à minha frente.
            Para passar o tempo eu dispunha de alguns livros didáticos. Da física à literatura eu me deliciava com os conceitos e exercícios, nem mesmo tendo vontade de olhar para a porta de aço para ver se alguém estava entrando. O lugar era bastante silencioso, o que me deixava completamente envolvido pela leitura. Dificilmente algum ruído desviaria minha atenção, mas no máximo eu escutaria e não me importaria.
            Pude perceber que a porta de aço estava abrindo mais espaço, seguida de pés e mãos que empurravam com bastante esforço. Não me importei muito. Após abrir o suficiente, os passos daquela pessoa começaram a tomar outra direção, a caminho da pilha de livros didáticos. Continuei minha leitura sobre o movimento pós-moderno.
            O banco no qual eu estava sentado tinha espaço suficiente para mais uma pessoa sentar e ler confortavelmente. Aquela pessoa que parou na pilha de livros por alguns minutos finalmente escolheu um livro. Como o único assento disponível era o banco da praça, imaginei que aquela pessoa não iria sentar no chão, apesar de estar impecavelmente limpo. Não olhei, mas os passos começaram a vir na minha direção.
            Essa pessoa começou a folhear seu livro, como se tivesse colocado um marca-páginas antes de estar ali do meu lado. Assim como eu, a sua leitura estava profundamente focada, até me senti ignorado naquele momento. Enquanto líamos, lado-a-lado, o que menos espero acontece: mais pessoas começaram a entrar na edificação. Um grupo de trinta pessoas, algumas mais extrovertidas, outras introvertidas demais, tanto que voltavam para fora da edificação assim que chegavam.
            Dois terços dessas pessoas se dirigiram à pilha de livros, o restante preferiu sentar em círculo e começaram a conversar entre si sobre os mais variados assuntos, de música popular à vida pessoal e sentimental de cada um. Aqueles que pegaram livros também sentaram em círculo. Alguns puxaram canetas dos bolsos e iniciaram as listas de exercícios, outros apenas liam.
            Parecia que tudo permaneceria daquela forma, mas de repente eu escuto uma voz em tom de chamamento:

            _Ei cara! Disse um rapaz de boné.

            Levantei a cabeça e fiquei em dúvida:

            _É comigo? Respondi.
            _É tu mesmo! Chega mais, vem ler com a gente!

            Surpreendi-me, pois sempre me mantive no banco. Quis experimentar a leitura em grupo, então pela primeira vez eu me levantei e levei meu livro de literatura.
            O rapaz de boné me perguntou assim que sentei ao lado dele:

            _O que você está lendo, cara?
            _Isso aqui é um livro sobre os movimentos literários brasileiros. E você, o que está lendo?
            _Ah não se preocupe. É só um dever de matemática que o professor passou. Mas então quer dizer que você gosta de literatura, né? Se eu fosse tu, eu ajudava aquela garota ali.

            O rapaz apontou para uma moça bem magrinha, cabelos negros e óculos de grau. Imaginei que ela tinha alguma dificuldade com o conteúdo de literatura, então humildemente me dirigi até ela. Quando sentei ao seu lado, rapidamente ela desviou o olhar para a capa do livro que eu estava segurando:

            _”Iniciação à literatura”. Disse ela, sem ao menos olhar para minha cara.
            _É isso mesmo. O rapaz de boné de disse que era pra eu te aju...

            Ela me interrompeu.

            _Esse é um livro bastante desatualizado, a julgar pelo autor do livro. A maioria desses livros didáticos é produzida com muita subjetividade, principalmente quando se trata de assuntos tão variáveis no quesito interpretação. Por isso prefiro ler diretamente os livros, ao invés de pegar pontos de vista de pessoas completamente tendenciosas.

            Esperei a garota terminar de falar e olhei para o rapaz de boné. Ele estava morrendo de rir.

            _Pelo que eu estou vendo, você não tem dúvida alguma sobre o assunto, né?
            _É, acho que por agora não. Mas se você quiser sentar aí, fique à vontade. Disse a garota, voltado a ler.

            Quando reabri o livro, não consegui retornar à mesma concentração. A única coisa que eu conseguia fazer era olhar para aqueles que estavam à minha volta. Eram pessoas com intenções tão diferentes que qualquer pessoa diria que não se conheciam, mas entre leituras e rabiscos de lápis havia conversa. Era uma conversa sincera e carregada de respeito, por mais que houvesse muitas brincadeiras.
            Parecia que algo estava para mudar naquele lugar vazio. Acho que um dos elementos mais transformadores que existem, além da própria natureza, é o fato de existir calor humano. Nos momentos em que eu estava sozinho com os livros, eu sentia que faltava algo para que eu pudesse sentir-me completo. Ao sentar naquele círculo tão receptivo, finalmente encontrei a resposta.
            Sem perceber, meus olhos estavam fechados e tudo se tornou escuro. Como se uma lança afiadíssima passasse pelo meu estômago, senti uma dor indescritível, entretanto não consegui abrir os olhos ainda. Havia apenas escuridão, dor e gritos.
            Finalmente abri os olhos. A dor parecia ter aumentado e pude ver o ferimento grave abaixo do meu diafragma. Não sei como fiz isso, mas minhas mãos estavam cobertas de sangue e tive a sensação de ter enterrado minhas mãos em algum lugar. Meu corpo estava todo contraído, meus joelhos encostando-se a meu peito, numa tentativa frustrada de parar os sangramentos e reduzir os gritos.
            Após alguns minutos eu consegui alcançar o silêncio. Minha mente estava muito confusa, num misto de incompreensão e raciocínio rápido demais. Creio que esse seja o resultado de misturar adrenalina com a dor. Todas as pessoas que estava no lugar haviam desaparecido, o que aumentou a minha distorção da realidade. Os livros, todos empilhados e organizados.
            Numa pintura de vermelho sobre branco, meus olhos começaram a fechar pela última vez e para todo o sempre. Aquela pessoa ainda estava no banco, folheando seu livro.
            No escuro, meus pulmões ainda liberavam ar, o que me deixava angustiado, pois não sabia em que momento meus órgãos cessariam as funções. Senti vibrações em meus ouvidos. Passos em minha direção aumentou meu nervosismo. Tive a sensação de que aquela pessoa diria alguma coisa, mas não disse.
            Ela tocou na minha barriga, sujando as mãos de sangue. Inclinou seus lábios ao meu ouvido e pude sentir sua respiração ecoando pelos meus sentidos:

            _Psiu! Assopra que sara!

            Aquelas palavras funcionaram como um desfibrilador. Rapidamente me coloquei sentado. Assustado com o impulso, apoiei minhas mãos no chão e para a minha surpresa o sangue não estava mais lá.
            Girei meu pescoço para ver se encontrava aquela pessoa. Porém a porta de aço havia se fechado e eu estava só novamente. O que restou foram os livros, e para a minha surpresa o livros que aquela pessoa estava lendo se encontrava no banco de praça.
            A curiosidade foi mais forte. Na capa de livro estava escrito “Bíblia Sagrada”. Também havia um bilhete com a seguinte mensagem:

            “Não se preocupe com aquilo que você deixou de fazer, o que importa é aquilo que você fez de bom até esse momento.”

            Olhei um pouco mais abaixo e vi quem tinha escrito:

            “De sua amiga, Sara!”.

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