segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Pericárdio (22/02/2016)

     Não, esse não é um ensaio sobre a estrutura muscular do aparelho cardiovascular. Poderia ser, na verdade, até porque é sempre bom aprimorar o conhecimento acerca da nossa própria existência física, mas vou lhes poupar disso e me poupar também. Trata-se de uma narrativa complicadíssima de ser fazer, daquelas que só não são impossíveis de escrever devido à probabilidade de acontecimento, que é absurdamente mínima. A descrição que se segue não é tão palpável quanto o sangue transportado em nossas válvulas, é algo repugnante, doloroso e perceptível apenas uma única vez.
     Tudo se inicia com um puxão do ar pelas narinas. O ar que entra não se cria, se transforma. As minúsculas partículas logo se apropriam do ambiente escuro, viscoso e sanguinolento, seguindo caminho pelas hemoglobinas de sempre. O emaranhado de tubos e articulações não consegue manter as partículas inaladas por muito tempo e a tendência é dispersar para os tubos menores, os tais capilares (apesar de não estarem acima de nossas cabeças). Houve uma época em que consideravam esses tubos como vazios, possuindo apenas ar nesses tubos, o que era uma conclusão até certo ponto sensata e inevitavelmente lógica, afinal todos tinham narizes. Hoje sabemos que o ar deixa de ser transportado quando chega aos nossos pulmões.
       Assim como os tubos que se ramificam, os pulmões são grandes caixas cheias de ramificações, as quais nos permitem abrir a boca para blasfemar e desrespeitar. E pensar que as atrocidades que proferimos são originadas de um buraco "alienígena" no meio da nossa garganta.
      As partículas vão até o mais profundo dessas ramificações que se escondem nos pulmões, vão mesmo. De lá, vão para o resto do corpo, ou se você preferir, para as células. Sim, tudo isso em menos de um segundo. Legal, né?
     O mais interessante disso tudo é que o vermelho se torna escuro, muito escuro. É aquele ditado: tudo que vai, volta. No caso do ar que respiramos, tudo que vai no vermelho, volta no escuro. Nossas células não perdoam, logo expelem as partículas responsáveis pelo enegrecimento, a não ser que queiramos a sua permanência. A maneira mais fácil e mais estúpida de brigar com as próprias células é posicionando um cilindro de papel com mais de 4.700 substâncias advertidas pelo ministério da saúde. Dessa forma, as partículas permanecem, ocupam espaço, fazem a festa.
     Mas nem tudo está perdido. Para ser bem sincero, cada segundo de nossas vidas é dedicado a manter esse ciclo em sua melhor performance. Quem é que não leva um susto quando escuta a frase: "sua pressão está baixa"? É isso, admita. Quando você não assume essa responsabilidade, nem é preciso te arrancar as palavras, basta confirmar sua negligência com uma lata, garrafa ou copo preenchido por soluções à base de etanol. Sim, estou sabendo, está ferrado!
    Para o inferno aquela balela de que "cada pessoa tem o seu ritmo"! Falam disso como se fosse inato, como se em momento algum não houvesse o fator "decisão pessoal". Sempre há, entretanto somos lerdos demais para identificar quando isso acontece. Isso é muito sério, você não imagina.
   A maneira como você age e reage. A forma como você expressa as suas verdades passageiras. O sofrimento com o qual você vive por insistir em alimentar uma ilusão. Incrivelmente, todas essas coisas são inevitáveis, afinal são elas que dão sentido ao que chamamos de "vida".
     Consegue, meu caro amigo, perceber a forma como a vida se manifesta dentro do seu corpo? Se sim, me diga, não é incrível? Esqueça ciência, esqueça religião por apenas um momento. Consegue ouvir a partícula tocando o alvéolo, a última etapa antes de fazer parte da sua vida, por mais descartável que essa partícula possa ser?
      Eu sei, não consegue, ninguém consegue. Vou me confessar a você, tudo que eu disse aqui não passa de conhecimento livresco, não consigo ver ou ouvir a hemoglobina encher ou se esvaziar por osmose ou difusão facilitada. Porém, terei que assumir uma postura "clichê": Eu posso sentir!
     Basta fechar os olhos. Tape os seus ouvidos por algum tempo. Não vai demorar até o som aparecer. Apesar dos seus ouvidos internos estarem cheios de um líquido, você conseguirá identificar um ritmo, ou melhor, um instrumento musical que esteve e sempre estará dentro de você, e junto a você ele apodrecerá e será consumido por essa mesma terra que você pouco se preocupa em conhecer. Esse ritmo, cada vez mais lento, às vezes acelera, mas é recomendável que você tire os pés da tábua quando perceber que não encontra mais os freios. Vai bater.
     Esse instrumento é você. A partir do seu cuidado, da sua prudência, da sua consciência, esse instrumento é afinado dia após dia. Se você molhar, sujar, quebrar ou simplesmente se esquecer do instrumento, obviamente ele não emitirá mais as notas musicais. Assim como em um instrumento de cordas, o seu amor próprio é o seu diapasão. Procure a sincronia perfeita. Se não encontrar, peça a alguém para te ajudar, afinal um dueto é sempre mais impactante do que um trabalho solo. Não caia no erro de achar que possui talento suficiente para seguir sozinho.

    Acha que estou viajando? Não me importo, mas se quiser confirmar, ponha sua mão no lado esquerdo do peito. Sinta o pericárdio provocar suas mãos duvidosas e incrédulas. Sinta a peça principal do seu instrumento reger a sinfonia chamada "corpo humano".

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