Não,
esse não é um ensaio sobre a estrutura muscular do aparelho
cardiovascular. Poderia ser, na verdade, até porque é sempre bom
aprimorar o conhecimento acerca da nossa própria existência física,
mas vou lhes poupar disso e me poupar também. Trata-se de uma
narrativa complicadíssima de ser fazer, daquelas que só não são
impossíveis de escrever devido à probabilidade de acontecimento, que
é absurdamente mínima. A descrição que se segue não é tão
palpável quanto o sangue transportado em nossas válvulas, é algo
repugnante, doloroso e perceptível apenas uma única vez.
Tudo se
inicia com um puxão do ar pelas narinas. O ar que entra não se
cria, se transforma. As minúsculas partículas logo se apropriam do
ambiente escuro, viscoso e sanguinolento, seguindo caminho pelas
hemoglobinas de sempre. O emaranhado de tubos e articulações não
consegue manter as partículas inaladas por muito tempo e a tendência
é dispersar para os tubos menores, os tais capilares (apesar de não
estarem acima de nossas cabeças). Houve uma época em que
consideravam esses tubos como vazios, possuindo apenas ar nesses
tubos, o que era uma conclusão até certo ponto sensata e
inevitavelmente lógica, afinal todos tinham narizes. Hoje sabemos
que o ar deixa de ser transportado quando chega aos nossos pulmões.
Assim
como os tubos que se ramificam, os pulmões são grandes caixas
cheias de ramificações, as quais nos permitem abrir a boca para
blasfemar e desrespeitar. E pensar que as atrocidades que proferimos
são originadas de um buraco "alienígena" no meio da nossa
garganta.
As
partículas vão até o mais profundo dessas ramificações que se
escondem nos pulmões, vão mesmo. De lá, vão para o resto do
corpo, ou se você preferir, para as células. Sim, tudo isso em
menos de um segundo. Legal, né?
O mais
interessante disso tudo é que o vermelho se torna escuro, muito
escuro. É aquele ditado: tudo que vai, volta. No caso do ar que
respiramos, tudo que vai no vermelho, volta no escuro. Nossas células
não perdoam, logo expelem as partículas responsáveis pelo
enegrecimento, a não ser que queiramos a sua permanência. A maneira
mais fácil e mais estúpida de brigar com as próprias células é
posicionando um cilindro de papel com mais de 4.700 substâncias
advertidas pelo ministério da saúde. Dessa forma, as partículas
permanecem, ocupam espaço, fazem a festa.
Mas nem
tudo está perdido. Para ser bem sincero, cada segundo de nossas
vidas é dedicado a manter esse ciclo em sua melhor performance. Quem
é que não leva um susto quando escuta a frase: "sua pressão
está baixa"? É isso, admita. Quando você não assume essa
responsabilidade, nem é preciso te arrancar as palavras, basta
confirmar sua negligência com uma lata, garrafa ou copo preenchido
por soluções à base de etanol. Sim, estou sabendo, está ferrado!
Para o
inferno aquela balela de que "cada pessoa tem o seu ritmo"!
Falam disso como se fosse inato, como se em momento algum não
houvesse o fator "decisão pessoal". Sempre há, entretanto
somos lerdos demais para identificar quando isso acontece. Isso é
muito sério, você não imagina.
A
maneira como você age e reage. A forma como você expressa as suas
verdades passageiras. O sofrimento com o qual você vive por insistir
em alimentar uma ilusão. Incrivelmente, todas essas coisas são
inevitáveis, afinal são elas que dão sentido ao que chamamos de
"vida".
Consegue,
meu caro amigo, perceber a forma como a vida se manifesta dentro do
seu corpo? Se sim, me diga, não é incrível? Esqueça ciência,
esqueça religião por apenas um momento. Consegue ouvir a partícula
tocando o alvéolo, a última etapa antes de fazer parte da sua vida,
por mais descartável que essa partícula possa ser?
Eu sei,
não consegue, ninguém consegue. Vou me confessar a você, tudo que
eu disse aqui não passa de conhecimento livresco, não consigo ver
ou ouvir a hemoglobina encher ou se esvaziar por osmose ou difusão
facilitada. Porém, terei que assumir uma postura "clichê":
Eu posso sentir!
Basta
fechar os olhos. Tape os seus ouvidos por algum tempo. Não vai
demorar até o som aparecer. Apesar dos seus ouvidos internos estarem
cheios de um líquido, você conseguirá identificar um ritmo, ou
melhor, um instrumento musical que esteve e sempre estará dentro de
você, e junto a você ele apodrecerá e será consumido por essa
mesma terra que você pouco se preocupa em conhecer. Esse ritmo, cada
vez mais lento, às vezes acelera, mas é recomendável que você
tire os pés da tábua quando perceber que não encontra mais os
freios. Vai bater.
Esse
instrumento é você. A partir do seu cuidado, da sua prudência, da
sua consciência, esse instrumento é afinado dia após dia. Se você
molhar, sujar, quebrar ou simplesmente se esquecer do instrumento,
obviamente ele não emitirá mais as notas musicais. Assim como em um
instrumento de cordas, o seu amor próprio é o seu diapasão.
Procure a sincronia perfeita. Se não encontrar, peça a alguém para
te ajudar, afinal um dueto é sempre mais impactante do que um
trabalho solo. Não caia no erro de achar que possui talento
suficiente para seguir sozinho.
Acha que
estou viajando? Não me importo, mas se quiser confirmar, ponha sua
mão no lado esquerdo do peito. Sinta o pericárdio provocar suas
mãos duvidosas e incrédulas. Sinta a peça principal do seu
instrumento reger a sinfonia chamada "corpo humano".
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