sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Sequoia (19/02/2016)

     A estrutura de uma folha é um relógio natural. De tanto produzir o seu próprio alimento, parece que a folha é atingida por um profundo cansaço. Enquanto há luz, há trabalho. A folha é quase um ser humano moderno, com exceção daqueles que trocam o dia pela noite para garantirem o seu sustento. O cansaço da folha é expresso pela cor que ela recebe a partir dos pincéis do tempo. Cada dia é uma pincelada, um retoque que, no fim, acaba por deixá-la cair de sua estrutura principal.
     A folha, já amarelada, quase amarronzada, não permite que alguém a veja cair. Sua queda se dá de madrugada, porém nem mesmo os animais de hábitos noturnos percebem ela cair, afinal é silencioso, leve, natural ao extremo. O dia seguinte começa com a névoa espessa. Aos poucos a névoa se dispersa e as folhas caídas são reveladas. Enquanto estavam na árvore elas não eram tão unidas. Cada uma no seu espaço, transformando glicose, ramificadas de maneira segregada. Parece loucura, mas a copa de uma árvore é mais desunida do que podemos perceber. No chão, todas secas, não precisam mais se preocuparem em qual posição a captação de luz é melhor, elas apenas estão ali, imóveis, dependentes da ação do vento, destinadas a compor os sedimentos que receberão as folhas futuras. Sim, toda folha é uma matriarca.
     A vida não tem limites. Enquanto o ciclo se mantém pela eternidade, sempre haverá uma existência que não aceita essa realidade. A vontade de fazer a diferença, de propor uma nova perspectiva para a coletividade alienada. Normalmente são mentes jovens que pensam dessa forma. Mentes frescas, saudáveis, receptivas, mas sobretudo inexperientes. A tendência é desanimar, mudar de ideia de uma hora para outra. Apesar da volatilidade, é extremamente normal.
     Mas a folha seca quebrou. E foi por causa de passos calmos, muito calmos. Pisada por pisada, folha quebrada por folha quebrada. Logo o som dos galhos se partindo juntou-se à sinfonia da floresta de sequóias. Uma sinfonia paradoxal, dotada de silêncio, mas ao mesmo tempo barulhenta, ao ponto de não permitir que o grito mais alto se espalhasse pelo seu território. Qualquer ser humano que se atrevesse a entrar no seu santuário, deveria curvar-se devido à presença dos mais velhos. Tão velhos, tão resistentes, tão imponentes. Assim são as sequoias.
    O quebrador de folhas não se curvou, apenas continuou caminhando, porém sem intenção alguma, apenas caminhava por caminhar. O atrevimento era tal que nem mesmo se importou em admirar o santuário. Herege!
     Para se ter uma ideia da autoridade das anciãs, nem mesmo o sol se atreve a atacá-las com seus raios escaldantes, pois ele abranda e acaricia suas estruturas de tal forma que em seu interior não há ambiente mais fresco. As garras das raízes são os bancos, o solo coberto de folhagens é o pátio, os troncos basilares são os edifícios e o resto é calmaria e silêncio. A arquitetura que o homem sempre desejou, tentou executar e hoje existe de forma artificial. Ambiente parecido nas cidades elitizadas são as praças de condomínios verticais, e em razoável silêncio diurno.
     O herege cansou. Ao sentar em uma raiz, sentiu o tecido de sua calça moleton umedecer. Nem mesmo as sequóias escapam do orvalho matinal. Mas não se importou, apenas flexionou os joelhos, apoiou os cotovelos em seus fêmures e, melancolicamente, descansou a cabeça na palma de suas mãos. Logo, o sonífero da natureza alcançou o mais profundo do seu consciente, mais precisamente no meio de sua cabeça. Apesar de ser o começo do dia e de ter acabado de despertar, o sono profundo lhe veio novamente. As pálpebras estavam para se juntar e a paisagem se esconderia ao ser minimizada pela escuridão ocular. Mas não.
     Um toque leve, suave e sem pretensões. De súubito a sua alma volta ao bucolismo supremo daquele lugar sagrado. O herege procura atordoado a origem daquele toque, mas essa se torna uma tarefa difícil. Decide se levantar daquela raiz e retomar a caminhada para encontrar o que acreditava ter perdido. Não tinha sentido gritar algo naquela solidão, até porque é muito difícil chamar por algo que nem sequer se sabe o nome. Mais folhas quebradas, mais galhos se partindo, dessa vez com mais frequência e caracterizando o desespero do caminhar humano. Onde estaria aquele toque?
        Era apenas uma cegueira, uma ingenuidade diante do óbvio. O toque sempre estivera ali, bem atrás do seu sono, o responsável pela dormência profunda.
     Para confirmar sua inocência, outro toque. O movimento súbito do herege à procura daquele ser brincalhão passou a ser cansativo, os olhos não queriam mais tentar acompanhar o que parecia ser impossível de enxergar naquelas circunstâncias, apesar de ser dia, um dia muito bonito por sinal. O herege pensou em desistir, o que logo aconteceu. Ainda em pé, ofegante e frustrado, aquele indivíduo insubmisso não sentia mais vontade em perseguir ou compreender suas incertezas.
      Porém era muito óbvio. Cercado por todos os lados por incontáveis sequóias, o herege não se deu conta de que a brincadeira, ou melhor, o brinquedo das anciãs era ele mesmo. Como uma bola em plena partida de futebol, seu pequeno corpo não sabia para onde ir, apenas para qual raiz se direcionaria, trocando de sequóia em sequóia. Se era um ser humano, difícil concluir com certeza, mas se fosse, com toda certeza não gosta de ver o herege em estado de calma, afinal nem mesmo permitiu um momento de sono.

A sequóia olhou para o herege, o herege olhou para a sequoia. Eles se beijaram.

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