A
estrutura de uma folha é um relógio natural. De tanto produzir o
seu próprio alimento, parece que a folha é atingida por um profundo
cansaço. Enquanto há luz, há trabalho. A folha é quase um ser
humano moderno, com exceção daqueles que trocam o dia pela noite
para garantirem o seu sustento. O cansaço da folha é expresso pela
cor que ela recebe a partir dos pincéis do tempo. Cada dia é uma
pincelada, um retoque que, no fim, acaba por deixá-la cair de sua
estrutura principal.
A folha,
já amarelada, quase amarronzada, não permite que alguém a veja
cair. Sua queda se dá de madrugada, porém nem mesmo os animais de
hábitos noturnos percebem ela cair, afinal é silencioso, leve,
natural ao extremo. O dia seguinte começa com a névoa espessa. Aos
poucos a névoa se dispersa e as folhas caídas são reveladas.
Enquanto estavam na árvore elas não eram tão unidas. Cada uma no
seu espaço, transformando glicose, ramificadas de maneira
segregada. Parece loucura, mas a copa de uma árvore é mais
desunida do que podemos perceber. No chão, todas secas, não
precisam mais se preocuparem em qual posição a captação de luz é
melhor, elas apenas estão ali, imóveis, dependentes da ação do
vento, destinadas a compor os sedimentos que receberão as folhas
futuras. Sim, toda folha é uma matriarca.
A vida
não tem limites. Enquanto o ciclo se mantém pela eternidade, sempre
haverá uma existência que não aceita essa realidade. A vontade de
fazer a diferença, de propor uma nova perspectiva para a
coletividade alienada. Normalmente são mentes jovens que pensam
dessa forma. Mentes frescas, saudáveis, receptivas, mas sobretudo
inexperientes. A tendência é desanimar, mudar de ideia de uma hora
para outra. Apesar da volatilidade, é extremamente normal.
Mas a
folha seca quebrou. E foi por causa de passos calmos, muito calmos.
Pisada por pisada, folha quebrada por folha quebrada. Logo o som dos
galhos se partindo juntou-se à sinfonia da floresta de sequóias.
Uma sinfonia paradoxal, dotada de silêncio, mas ao mesmo tempo
barulhenta, ao ponto de não permitir que o grito mais alto se
espalhasse pelo seu território. Qualquer ser humano que se atrevesse
a entrar no seu santuário, deveria curvar-se devido à presença dos
mais velhos. Tão velhos, tão resistentes, tão imponentes. Assim
são as sequoias.
O
quebrador de folhas não se curvou, apenas continuou caminhando,
porém sem intenção alguma, apenas caminhava por caminhar. O
atrevimento era tal que nem mesmo se importou em admirar o santuário.
Herege!
Para se
ter uma ideia da autoridade das anciãs, nem mesmo o sol se atreve a
atacá-las com seus raios escaldantes, pois ele abranda e acaricia
suas estruturas de tal forma que em seu interior não há ambiente
mais fresco. As garras das raízes são os bancos, o solo coberto de
folhagens é o pátio, os troncos basilares são os edifícios e o
resto é calmaria e silêncio. A arquitetura que o homem sempre
desejou, tentou executar e hoje existe de forma artificial. Ambiente
parecido nas cidades elitizadas são as praças de condomínios
verticais, e em razoável silêncio diurno.
O herege
cansou. Ao sentar em uma raiz, sentiu o tecido de sua calça moleton
umedecer. Nem mesmo as sequóias escapam do orvalho matinal. Mas não
se importou, apenas flexionou os joelhos, apoiou os cotovelos em seus
fêmures e, melancolicamente, descansou a cabeça na palma de suas
mãos. Logo, o sonífero da natureza alcançou o mais profundo do seu
consciente, mais precisamente no meio de sua cabeça. Apesar de ser o
começo do dia e de ter acabado de despertar, o sono profundo lhe
veio novamente. As pálpebras estavam para se juntar e a paisagem se
esconderia ao ser minimizada pela escuridão ocular. Mas não.
Um toque
leve, suave e sem pretensões. De súubito a sua alma volta ao
bucolismo supremo daquele lugar sagrado. O herege procura atordoado a
origem daquele toque, mas essa se torna uma tarefa difícil. Decide
se levantar daquela raiz e retomar a caminhada para encontrar o que
acreditava ter perdido. Não tinha sentido gritar algo naquela
solidão, até porque é muito difícil chamar por algo que nem
sequer se sabe o nome. Mais folhas quebradas, mais galhos se
partindo, dessa vez com mais frequência e caracterizando o desespero
do caminhar humano. Onde estaria aquele toque?
Era
apenas uma cegueira, uma ingenuidade diante do óbvio. O toque sempre
estivera ali, bem atrás do seu sono, o responsável pela dormência
profunda.
Para
confirmar sua inocência, outro toque. O movimento súbito do herege
à procura daquele ser brincalhão passou a ser cansativo, os olhos
não queriam mais tentar acompanhar o que parecia ser impossível de
enxergar naquelas circunstâncias, apesar de ser dia, um dia muito
bonito por sinal. O herege pensou em desistir, o que logo aconteceu.
Ainda em pé, ofegante e frustrado, aquele indivíduo insubmisso não
sentia mais vontade em perseguir ou compreender suas incertezas.
Porém
era muito óbvio. Cercado por todos os lados por incontáveis
sequóias, o herege não se deu conta de que a brincadeira, ou
melhor, o brinquedo das anciãs era ele mesmo. Como uma bola em plena
partida de futebol, seu pequeno corpo não sabia para onde ir, apenas
para qual raiz se direcionaria, trocando de sequóia em sequóia. Se
era um ser humano, difícil concluir com certeza, mas se fosse, com
toda certeza não gosta de ver o herege em estado de calma, afinal
nem mesmo permitiu um momento de sono.
A
sequóia olhou para o herege, o herege olhou para a sequoia. Eles se
beijaram.
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