quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Topo (03/02/2016)

   
      Centímetro por centímetro, a sola dos pés se afasta lentamente, rapidamente do solo frio de granitina. O ambiente, aconchegante quando solitário, desconfortável quando aglomerado, sugestivo quando acompanhado. A música, um piano dotado de certa resignação e suavidade, mas pouco agitado. Um carpete surrado, não tão sujo, apenas utilizado demais. Os braços cruzados e calmos, nem tão pressionados, nem tão relaxados, só calmos. O bico do sapato direito vez ou outra encosta no assoalho, semelhante ao tique-taque do relógio, o relógio psicológico, que pode ter a contagem que você imaginar. Olhos bem abertos, atentos à numeração que cresce de acordo com o movimento ascendente.
     Uma linha preta logo recebe luz e expande a abertura com um sinal. A deusa sem a qual não viveríamos adequadamente, Eletricidade, agracia o ambiente a partir dos seus servos fieis e limitados: as lâmpadas. Algumas exigem mais da deusa do que outras, mas tudo bem distribuído, o funcionamento que não deverá parar exceto pela intervenção de outro deus, o Gerador. Passos firmes seguem ao palácio. Tudo e todos voltados para a presença da existência maior. Reis, Palhaços, Moças, Rapazes, Homens, Mulheres, Bebês, Uniformes, Milho, Frutose, Sacarose, Glicose, Cadeiras, Mesas, Plantas, Artificiais, Papel, Informação, Senhas, Filas, Milho, Estourado. Gente. Até animais, como Girafas.
     Os seres do cubículo acabam dispersando. Alguns seguem as setas que estão nas paredes, setas que nunca estiveram lá, porém a mente cria o material com apenas algumas sinapses e uma pitada de rotina. E seguem para o lugar de sempre, e lá permanecem por um limitado número de segundos, às vezes mais, às vezes menos. Outras não seguem setas, apenas determinam qual dos servos vão querer consultar, como o Rei ou o Palhaço. Outros apenas saem do cubículo, avulsos, mas convictos de que a propriedade do bolso os guiará para algum lugar a partir de lá. Existem muitos cubículos como esse no palácio, entretanto os servos têm o privilégio de dividir o espaço do cubículo com outros servos apenas.
       O cubículo, carpete surrado, piano resignado, agora está vazio. Quase.
     A caixa de metal prossegue a escalada vertical pelo cabo de aço mais confiável pelos servos, e pelos humanos também. A roldana gasta, mas ainda persiste em levantar e descer o peso ao qual está atrelado até o último segundo de sua utilidade. Os últimos centímetros, torturantes centímetros, carregados de ruídos, mais altos que o piano resignado incansável. Parou.
      A linha preta recebe luz mais uma vez. Dessa vez a deusa eletricidade não agraciou o vácuo de carpete e numeração ao máximo. Dessa vez a agraça veio dos raios, que não são deuses, nem consideramos como deuses, apenas existem e de vez em quando repudiamos pelo incômodo que a sua natureza nos traz. Sim, esses raios são mais fortes que nós. O cubículo não quer receber a graça por muito tempo, aliás, ele tem um limite para ser agraciado, em poucos segundos ele voltará ao solo frio de granitina. E voltou.
     Dizem que o vento é mais forte em lugares altos. Não sei bem. No calor, o suor que desce pelas bochechas clama por um vento forte que tenha a capacidade de secá-lo o mais rápido possível. O suor é levado para lugares altos e nem sempre esse vento tão desejado vem nos agraciar. Sim, o vento também é um deus. O vão da caixa de metal está cada vez mais profundo. O perigo aumenta consideravelmente para o indivíduo que ousa mergulhar ali. Na borda desse vão, uma poeira densa, escura, quer a todo custo se misturar aos elementos invisíveis do ar em movimento. Mas ela não consegue, é densa demais.
      Pelo menos ao chão essa poeira se adapta muito bem. Rastejando lentamente, ela leva consigo alguns, entre eles o papel do chiclete, o pedaço de plástico bolha que outrora fora descartado, o pedacinho de pão que eu jamais saberia como parou ali, mas suponho que o devorador tenha descido pela caixa de metal, satisfeito. A poeira parou numa quina, ou melhor, num encontro entre o concreto horizontal e o vertical, o último finito até uns poucos centímetros.
      Uma parte do concreto horizontal estava um pouco enegrecido, mas só uma pequena parte, o restante era apenas as marcas dos golpes certeiros e incontáveis dos raios, vindos da existência azul logo acima. O concreto vertical também estava enegrecido em uma pequena parte de sua extensão, no mesmo sentido do horizontal. Acontece que, segundo por segundo, o lugar enegrecido mudava a sua forma. De estreito para amplo, de fino para grosso, de longo para curto. Segundo por segundo o lugar enegrecido parecia querer se separar daquele concreto. E se separou.
Pouco a pouco, o vento tão desejado ficava mais intenso, mais veloz, mais eficaz para limpar o suor. Os braços calmos, cruzados e passivos, deixaram o deus vento tomar conta de sua utilidade, pois para aquele rosto seco não havia mais.
     Centímetro por centímetro, metro por metro, quilômetro por hora. A deusa que toca nossos corpos sentiu o desejo de pressionar ainda mais forte contra aquele ser. E pressionou.
      Os olhos, fechados. Os lábios, cerrados. As bochechas, secas. Os braços, imóveis. A pele, pálida. O cabelo, vermelho. As roupas, rubras. A mente, inativa. O corpo, sem vida.
      A poeira ainda estava lá, observando cada ser humano e servo que se aproximava daquela existência, com o seu papel de bala, seu plástico bolha e o seu pedaço de pão. O devorador satisfeito também se aproximou. No topo, os raios ainda golpeavam o concreto vertical e horizontal. No solo de granitina, a caixa de metal aguarda outros braços calmos, e o piano resignado persiste. Os servos voltam, os humanos voltam para dentro do palácio. Os Reis, Palhaços e Girafas ainda são solicitados.

       A existência não sua mais, apenas apodrece.

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