Uma
linha preta logo recebe luz e expande a abertura com um sinal. A
deusa sem a qual não viveríamos adequadamente, Eletricidade,
agracia o ambiente a partir dos seus servos fieis e limitados: as
lâmpadas. Algumas exigem mais da deusa do que outras, mas tudo bem
distribuído, o funcionamento que não deverá parar exceto pela
intervenção de outro deus, o Gerador. Passos firmes seguem ao
palácio. Tudo e todos voltados para a presença da existência
maior. Reis, Palhaços, Moças, Rapazes, Homens, Mulheres, Bebês,
Uniformes, Milho, Frutose, Sacarose, Glicose, Cadeiras, Mesas,
Plantas, Artificiais, Papel, Informação, Senhas, Filas, Milho,
Estourado. Gente. Até animais, como Girafas.
Os seres
do cubículo acabam dispersando. Alguns seguem as setas que estão
nas paredes, setas que nunca estiveram lá, porém a mente cria o
material com apenas algumas sinapses e uma pitada de rotina. E seguem
para o lugar de sempre, e lá permanecem por um limitado número de
segundos, às vezes mais, às vezes menos. Outras não seguem setas,
apenas determinam qual dos servos vão querer consultar, como o Rei
ou o Palhaço. Outros apenas saem do cubículo, avulsos, mas
convictos de que a propriedade do bolso os guiará para algum lugar a
partir de lá. Existem muitos cubículos como esse no palácio,
entretanto os servos têm o privilégio de dividir o espaço do
cubículo com outros servos apenas.
O
cubículo, carpete surrado, piano resignado, agora está vazio.
Quase.
A caixa
de metal prossegue a escalada vertical pelo cabo de aço mais
confiável pelos servos, e pelos humanos também. A roldana gasta,
mas ainda persiste em levantar e descer o peso ao qual está atrelado
até o último segundo de sua utilidade. Os últimos centímetros,
torturantes centímetros, carregados de ruídos, mais altos que o
piano resignado incansável. Parou.
A linha
preta recebe luz mais uma vez. Dessa vez a deusa eletricidade não
agraciou o vácuo de carpete e numeração ao máximo. Dessa vez a
agraça veio dos raios, que não são deuses, nem consideramos como
deuses, apenas existem e de vez em quando repudiamos pelo incômodo
que a sua natureza nos traz. Sim, esses raios são mais fortes que
nós. O cubículo não quer receber a graça por muito tempo, aliás,
ele tem um limite para ser agraciado, em poucos segundos ele voltará
ao solo frio de granitina. E voltou.
Dizem
que o vento é mais forte em lugares altos. Não sei bem. No calor, o
suor que desce pelas bochechas clama por um vento forte que tenha a
capacidade de secá-lo o mais rápido possível. O suor é levado
para lugares altos e nem sempre esse vento tão desejado vem nos
agraciar. Sim, o vento também é um deus. O vão da caixa de metal
está cada vez mais profundo. O perigo aumenta consideravelmente para
o indivíduo que ousa mergulhar ali. Na borda desse vão, uma poeira
densa, escura, quer a todo custo se misturar aos elementos invisíveis
do ar em movimento. Mas ela não consegue, é densa demais.
Pelo
menos ao chão essa poeira se adapta muito bem. Rastejando
lentamente, ela leva consigo alguns, entre eles o papel do chiclete,
o pedaço de plástico bolha que outrora fora descartado, o pedacinho
de pão que eu jamais saberia como parou ali, mas suponho que o
devorador tenha descido pela caixa de metal, satisfeito. A poeira
parou numa quina, ou melhor, num encontro entre o concreto horizontal
e o vertical, o último finito até uns poucos centímetros.
Uma
parte do concreto horizontal estava um pouco enegrecido, mas só uma
pequena parte, o restante era apenas as marcas dos golpes certeiros e
incontáveis dos raios, vindos da existência azul logo acima. O
concreto vertical também estava enegrecido em uma pequena parte de
sua extensão, no mesmo sentido do horizontal. Acontece que, segundo
por segundo, o lugar enegrecido mudava a sua forma. De estreito para
amplo, de fino para grosso, de longo para curto. Segundo por segundo
o lugar enegrecido parecia querer se separar daquele concreto. E se
separou.
Pouco a
pouco, o vento tão desejado ficava mais intenso, mais veloz, mais
eficaz para limpar o suor. Os braços calmos, cruzados e passivos,
deixaram o deus vento tomar conta de sua utilidade, pois para aquele
rosto seco não havia mais.
Centímetro
por centímetro, metro por metro, quilômetro por hora. A deusa que
toca nossos corpos sentiu o desejo de pressionar ainda mais forte
contra aquele ser. E pressionou.
Os
olhos, fechados. Os lábios, cerrados. As bochechas, secas. Os
braços, imóveis. A pele, pálida. O cabelo, vermelho. As roupas,
rubras. A mente, inativa. O corpo, sem vida.
A poeira
ainda estava lá, observando cada ser humano e servo que se
aproximava daquela existência, com o seu papel de bala, seu plástico
bolha e o seu pedaço de pão. O devorador satisfeito também se
aproximou. No topo, os raios ainda golpeavam o concreto vertical e
horizontal. No solo de granitina, a caixa de metal aguarda outros
braços calmos, e o piano resignado persiste. Os servos voltam, os
humanos voltam para dentro do palácio. Os Reis, Palhaços e Girafas
ainda são solicitados.
A
existência não sua mais, apenas apodrece.
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