quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A morte dos sonhos (24/01/2018)

    O passo em falso no concreto da calçada não poderia ser mais inoportuno. Talvez pela quantidade exagerada de álcool em seu sangue, o equilíbrio inegável daquele que sóbrio mantinha uma postura impecável tornara-se tragicamente ridículo. Os tropeços no asfalto úmido pela geada da noite urbana - ácida como sempre -, não facilitavam para a sua redenção e descanso após uma longa saída com colegas de trabalho.
    Ah, o trabalho. Há nesse mundo algo mais entediante e depressivo do que carregar quilos e mais quilos de pedaços de carne? Sim, e isso seria contabilizar os pedaços de carne (e rezar para que a contagem não resultasse em saldo negativo para a fábrica). A dignidade do trabalho é inegável, entretanto a perspectiva de vida diante do cotidiano do labor pode não ser tão digna. Convenhamos que exista uma certa tensão, pressão, opressão. Para esse mero controlador de estoque, a saída óbvia seria aliviar-se da pressão enquanto seu corpo físico estivesse descansando em um balcão de bar. Apenas o corpo. Pensamentos não são necessários. Pessoas não são necessárias. O necessário é a taça, a gota que escorre pela taça, o whisky que desce como fogo para aquilo que ele costumava chamar de presença física.
    De fato, os colegas estavam ali, porém não bebiam muito. Na perspectiva do contador de carne, todos eles sabiam apenas vomitar enquanto se mantinha lúcido e íntegro na sua ilusão momentânea, afinal logo não se lembraria de nada.  Os vômitos eram mais ou menos assim: "Você precisa procurar ajuda!", ou "Olha para você, Sereno, todo acabado.", ou "Pare por hoje, você já bebeu demais!". Para ele, cada uma dessas frases fediam, deixavam marcas pelo chão e, de alguma forma, o deixavam mais triste.
    Inúmeras vezes precisou ser levado pelos ombros de alguém até aquele apartamento de solteiro em uma área pouco apreciada pelas pessoas daquela cidade. Nunca considerou como uma moradia, pois ninguém o visitava nos finais de semana, ninguém ligava em seu telefone para marcar um encontro casual, ninguém para dizer "Seja bem-vindo!". Apenas um lugar.
    As explicações para a sua queda variam. Primeiro, a inevitável demissão. Mas não pense que a justa causa seria a dependência da garrafa de bebida, afinal um funcionário que não almeja o crescimento da indústria deve ser cortado o mais rápido possível.
    Segundo, a solidão. Terceiro, a falta de senso para tudo. Não poderia evitar, pois até mesmo seu lugar foi tomado. Donos de aluguéis são amáveis até certo ponto, o qual está localizado em dois meses de aluguel atrasado. A ele, restava apenas uma preciosidade.
    Como quem não sabe trocar a pepita de ouro pelo papel-moeda, nosso contador não sabia o que fazer ali, dessa vez sozinho, sem colegas mal-educados vomitadores de falso moralismo - ora, eles também bebiam! -, e sem a luz esquizofrênica do letreiro do bar que já estava farto das confusões e das dívidas galopantes daquele que um dia foi um cliente fiel. Que pena, a preciosidade acabou e se quebrou em vários pedaços de vidro e espirrou seu resto etílico.
    Naquele momento, Sereno apenas contava as frustrações, as perdas, os degraus, os metros, as barras de segurança do viaduto e finalmente, os segundos, até a sua cabeça ser atingida pelo asfalto. Sim, atingido, pois antes do salto, o mundo sempre o atacara, como um mecanismo de descarte daquilo que não é necessário. Adormeceu.

***

    - Que momento difícil, moço!
    Sereno procurou inutilmente pela origem da voz. Com toda certeza alguém naquele lugar falou com ele. Mas, será que onde ele estava, poderia realmente ser chamado de lugar? Era muito claro, porém lâmpada ou vela alguma fornecia a luz. Na verdade, a questão é que não havia escuridão que fizesse necessário o uso de luz produzida.
    A mente de Sereno inundou-se de pensamentos enquanto corria para todos os lados daquele lugar, sem mesmo saber para que direção estava indo. Ele ansiava pela possibilidade de esbarrar ou até mesmo se chocar com a parede, porém depois de um longo tempo - o qual estava levando-o ao desespero -, não encontrou nada além da superfície e da visão branca diante da sua existência que para ele já deveria não apresentar sinal algum. "Eu me matei", pensou ele. O fôlego desgastado e as mãos nos joelhos diziam, dolorosamente, o contrário.
    Seus pensamentos o levaram a uma única dúvida. "Por que estou aqui?".
    - Tenho certeza que já fez essa pergunta antes.
    Dessa vez, Sereno conseguiu identificar o autor da voz. Bastou apenas virar o rosto para trás.
    - Quem é você? Perguntou Sereno. A pessoa por sua vez nada respondeu.
    Aquela pessoa, sentada sobre uma pequena cômoda (nada mais que 50 com de altura, talvez 40 cm), teve que sair completamente de cima do móvel para conseguir encostar seus pequenos pés no chão alvo. A cabeça coberta pelo cabelo castanto-escuro, rostinho de bebê, corpo pequeno, moleton e pés descalços. Sereno pensou: "E só um moleque".
    -Realmente, sou apenas um menino. Disse o moleque.
    A essa altura, Sereno percebeu que seria melhor se expressar mais com palavras do que com pensamentos, pois até o momento o garoto apenas os lera. A confusão na expressão do contador era tão evidente que não deu muita atenção à habilidade incomum daquele ser pequeno e desconhecido.
    - Vamos poupar as apresentações. Quero que você pegue o objeto da cômoda atrás de mim. Logo você vai precisar dele. Não tenho muito tempo até eu conseguir vê-la de novo. Adeus.
    Essa foi a fala solitária do garoto. Antes que Sereno pudesse se dar conta, aquela estranha presença havia desaparecido, deixando apenas aquela cômoda com duas gavetas. A madeira polida e os entalhes não deixavam dúvidas da antiguidade e do cuidado que alguém tem para com aquele pequeno móvel.
    Sereno sentiu uma pontada em sua mão. Mas nada que ferisse, apenas uma folha de grama. Logo, o local onde estava sentado gradativamente era coberto de grama, partindo da silhueta de suas pernas até se expandir para o infinito daquele branco. Graças ao verde vivo da relva, Sereno já podia identificar a linha do horizonte, do qual um céu de azul intenso cobria o espaço acima da sua cabeça. Tão azul, tão exuberante, que para os olhos do pobre contador, poderia ser nocivo. Sabe-se que o céu é azul graças ao sol, porém apesar da ausência de nuvens, Sereno não encontrou vestígio algum do astro.
    Uma árvore, de caule robusto, enraizada na terra como se usasse toda energia daquele ambiente, fez-se perceptível. A distância dele para a árvore não era tão grande, pois ao chegar mais perto ainda podia avistar a cômoda de madeira. A vitalidade da árvore era tão intensa que era impossível não querer tocá-la. Ele então, tocou.
    Os dedos frios de Sereno encostaram na madeira sólida da árvore. Como uma maldição, folha por folha encontrou a relva, a mesma relva que até poucos segundos era verde vivo, agora não passava de um vasto campo ressecado pelo tempo.
    Sereno, apesar da brusca mudança do ambiente, não se sentia culpado. Algo além dele causou aquilo. Rodeou a árvore, agora apenas galhos contorcidos, e encontrou uma mulher belíssima. Os joelhos encostando na testa, como uma criança triste que fecha o semblante e derrama lágrimas em silêncio no cantinho do quarto. Ao perceber a presença do homem, ela levantou o rosto e o encarou por alguns instantes. O silêncio foi interrompido:
    - Não entendo. Fiz tudo tão certo. Fui à escola, depois universidade, depois um emprego estável. Construí uma família, casei com um bom homem. Não é justo.
    Sereno disse:
    - Não sei se estou em posição de explicar, até porque eu nem mesmo sei o que está acontecendo comigo.
    - Tudo bem. Acho que entendi tudo.
    Enquanto a mulher falava, seus fios de cabelo, castanhos como o mais puro mogno, caíam na grama ressecada, um a um.
    - Vejo que você não está bem. Disse Sereno, um pouco chocado.
   - Meu Deus! Vou sentir tanta falta dele, das palavras dele, do corpo pequeno e delicado dele. Ah, meu filhinho.
    Sereno, em uma atitude incomum até aquele momento de sua vida, segurou as mãos da mulher, agora sem o longo cabelo castanho, sem a vitalidade feminina que um dia, muito antes disso tudo acontecer, teve o privilégio de usufruir. Ele olhou bem fundo nos olhos dela e pôde ver a luz desaparecendo dos seus olhos.
    Em um lapso de memória, lembrou das palavras do garoto que encontrara mais cedo: "Pegue o objeto da cômoda". Sereno não sabia exatamente o que estava fazendo ali, em um lugar que mudava de ambientação de maneira surreal, ajudando uma mulher desenganada e pronta para perder a vida a qualquer momento.
    - Não desista ainda! Vou pegar uma coisa e já volto!
    Com certo desespero, Sereno correu de encontro ao móvel de madeira e abriu a primeira gaveta o mais rápido que pôde. Encontrou um papel e apenas uma frase escrita. A caligrafia infantil o fez pensar na possibilidade do garoto ter escrito. Apesar disso, estava legível:
    "Encoste a mão na região do pâncreas". Estava escrito.
    Sereno não entendeu de imediato. Procurou algo na segunda gaveta e não encontrou mais nada. Sem pensar muito, correu de volta para a mulher. A cabeça baixa, porém a fraca respiração aliviou em partes a mente do contador. Agora, Sereno estava com medo. O que aconteceria se ele encostasse a mão na barriga daquela mulher? Pensamentos assim vieram com toda força, afinal aquele lugar estava completamente desconexo com a realidade que ele conhecia. Tudo ali parecia seguir o estado daquela mulher. À cada inspiração e expiração, a grama ficava cada vez mais ressecada, a árvore cada vez menos vital e resistente. Os galhos também começaram a cair.
    Até que um vento forte começou a ameaçar aqueles dois. Sereno sentiu, em algum lugar do seu coração, que estava perdendo um tempo precioso. Não pensou mais, apenas tocou a mulher na região indicada pelo escrito.
    O vento parou subitamente. Tudo parou. As folhas flutuavam, os galhos em movimentos caóticos também pararam. Não preciso dizer que Sereno ficou ainda mais apreensivo, apesar da sua atitude ter sido a mais sincera de toda a sua vida. Em choque, paralisado pelo silêncio absoluto daquele lugar, lentamente tirou sua mão do corpo daquela mulher.
    Apenas uma coisa moveu-se em meio àquele silêncio. Uma gota escorria pelo rosto da mulher. Sereno identificou uma, duas, três... Ela chorou. Chorou intensamente, de forma desesperada. As lágrimas umedeceram aqueles olhos quase sem vida, e logo o brilho voltou ao seu semblante. A relva pouco a pouco voltava a ser verde vivo. A árvore quase derrubou ambos ao voltar a ser a madeira forte e viva que era. As folhas voltaram, o céu intenso cobria o infinito como um grande lençol.
    A mulher secou as lágrimas, olhou para Sereno. Ela o abraçou. Ele pôde sentir o calor real do seu abraço, muito real. Ela retornou aquele olhar profundo, a voz embargada, e disse:
    - Obrigado!
    Ela se levantou, fitou o horizonte e se pôs a correr. Um menino de moleton e descalço correu de encontro a ela. Antes que Sereno pudesse assistir àquele momento, tudo voltou a ser branco. Ele permaneceu lá, sentado. Uma forte dor de cabeça e logo depois tudo tornou-se escuro.

***

    As notícias do dia seguinte anunciaram um suicídio em um viaduto acima de uma rodovia bastante movimentada. A causa da morte foi traumatismo craniano, precedido de um salto de cabeça. De acordo com o relatório de primeiros-socorros, era inacreditável que o corpo ainda apresentava sinais de vida mesmo após o choque com o asfalto, porém em alguns minutos de esforços inúteis, mas bem intencionados, o homem não resistiu.
    No mesmo dia, uma mulher adulta recebia alta de um hospital após uma cura milagrosa de um câncer de pâncreas. Ela segurava a mão do seu filho.
    Naqueles últimos segundos de vida, em meio ao caos de sua mente tão atribulada, Sereno tinha feito o seu último lamento: "Eu queria ter sido útil, ao menos uma vez na vida".

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