Todo
lugar sujo, antes de assim ser considerado, foi observado por alguém
que possui um conceito próprio de sujeira. Esse conceito é muito
individual, pois nem sempre o que é sujo está realmente sujo na
visão de segundo ou terceiro. O mesmo raciocínio vale para o que
consideramos limpo.
O
fato de não sermos oniscientes, além de ser frustrante em situações
corriqueiras, não é óbvio à primeira vista. Imagine se
soubéssemos tudo o que acontece ao nosso redor, no sentido mais
ontológico possível. Seria uma completa tragédia, afinal o
conhecimento não se limitaria ao mundo externo, pois o fator
pessoal, intrínseco, poderia motivar ódio ou paixão, ambos de
maneira exacerbada. Claro, tais especulações são possíveis apenas
se todos os seres humanos, de súbito, se tornassem oniscientes,
afinal essa é a realidade que temos, ou não, em mãos.
Justamente
por não sermos oniscientes, o mundo em que vivemos encarrega-se de
deixar os objetos de conhecimento prontos para que possamos ver,
conhecer, viver, explorar, maltratar, insultar e, talvez, amar.
Porém, aquilo que não percebemos, o que não implica apenas em ver,
pode se tornar o agente ativo dessa relação epistemológica, sendo
nós mesmos os objetos. Assim, existem lugares passivos de serem
limpos após o julgamento sobre a sua conservação superficial, mas
que dificilmente são percebidos. São nesses lugares onde existem
seres, mesmo que inofensivos e microscópicos, capazes de nos
observar e fazer de nós seu objeto de apreciação.
Em
um desses lugares, uma pequena fresta dá espaço para uma saída de
luz. A pequenez do lugar é considerável, entretanto isso não é
motivo para impedir a movimentação do ser em questão. Subindo e
descendo freneticamente pelas protuberâncias microscópicas, o seu
reconhecimento da geografia do lugar é abundante, entretanto jamais
foi capaz de desvendar os mistérios daquela abertura de luz. Talvez
fosse impossível o feito, afinal sua vida é mais parecida com um
momento ou suspiro para o ser humano.
Apesar
de não saber do que se tratava, o apagar e o acender de luzes
claramente não incomodava suas atividades habituais, que consistiam
em carregar resíduos em suas costas pequenas e frágeis. Entretanto,
era inevitável perceber as mudanças repentinas na claridade do
ambiente em momentos de descanso. Além dessas mudanças de
luminosidade, a sonoridade do lugar também mudava constantemente,
não somente devido a acústica do lugar – pois era um ambiente
completamente fechado, apenas a abertura para a luz era a exceção
–, mas alguns tipos de vibrações sonoras não identificáveis
para o seu entendimento faziam parte do seu dia-a-dia. Como se não
bastasse, o lugar era acometido por tremores, tão fortes que tiravam
o seu corpo do lugar com violência, sendo na maioria das vezes
aparado pelas formações rochosas responsáveis pelas penumbras.
De
fato, sua vida mais se parecia com uma prisão à moda dos filmes de
Hollywood da década de
setenta em diante, carregando pesados volumes sem um propósito
especial, privado de conhecer o mundo externo.
Temos
a certeza de que é improvável a polícia de um ser dessa natureza e
nessas condições em relação às ações de outros seres. Sua
incapacidade para alcançar a abertura e, quem sabe, encontrar novas
perspectivas para a sua vida, além da falta de motivação para tal,
eram fatores cruciais para que os últimos dias de sua vida fosse
ali, no escuro, com pedras e
um sol, às vezes presente, outras nem tanto, mas pelo menos enquanto
estivera ali, nunca havia se apagado.
Se
não fosse pela imprevisibilidade dos outros seres, o dia de dizer
adeus parecia ser adiado, mas foi graças a isso que essa forma de
vida pôde alcançar o que sempre ignorou, simplesmente por
considerar impossível para a sua capacidade física. Dessa vez, o
tremor foi exageradamente forte. Com os solavancos impiedosos do chão
em que pisava, fora jogado ao alto diversas vezes. Em um violento
impulso, seu corpo, aos
poucos, se encontrava com a luz.
Ao
tocar
na superfície daquela estranha forma rochosa, percebeu que a luz
tinha se tornado várias formas. Cores, sons que costumava perceber,
porém mais evidentes agora. Diante de si, um ser de tamanho colossal
em relação ao seu movimentava-se de maneira frenética, emitindo
sons muito altos e, sem sombra de dúvidas, deixando o observador
completamente desorientado. A
paralisia tomou conta de seu corpo e não conseguia se mexer em
hipótese alguma. Se ele fosse para qualquer um dos lados, cairia em
um abismo, a diferença era que um abismo ele já conhecia, o outro
não.
Além
desse ser que se movimentava no lugar revelado, havia outro, este
mais contido, quieto, comprimido, enquanto aquele continuava a se
movimentar. Após mais sons altos e movimentos, o ser retirou um
objeto de alguma parte do seu corpo, apontou para o ser contido e,
após dois impactos
precedidos
de sons que o observador jamais havia escutado, ele,
que pendia para os abismos perdeu o equilíbrio e, sem ação,
mergulhou na parte clara do abismo e finalmente seu corpo se
encontrou em um grande mar vermelho.
Mesmo
sem saber o significado de todos aqueles acontecimentos, aquele ser
testemunhou um dos atos mais contraditórios
que qualquer ser poderia realizar. Enquanto se afogava no mar
vermelho e dava seu último suspiro de vida, nunca poderia imaginar
que o ser imóvel ao seu lado, apesar de gigante, queria ser como
ele: pequeno, imperceptível, observador e inocente. Queria apenas
ser uma formiga.
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