domingo, 16 de setembro de 2018

Pequenez (16/09/2018)


    Todo lugar sujo, antes de assim ser considerado, foi observado por alguém que possui um conceito próprio de sujeira. Esse conceito é muito individual, pois nem sempre o que é sujo está realmente sujo na visão de segundo ou terceiro. O mesmo raciocínio vale para o que consideramos limpo.
    O fato de não sermos oniscientes, além de ser frustrante em situações corriqueiras, não é óbvio à primeira vista. Imagine se soubéssemos tudo o que acontece ao nosso redor, no sentido mais ontológico possível. Seria uma completa tragédia, afinal o conhecimento não se limitaria ao mundo externo, pois o fator pessoal, intrínseco, poderia motivar ódio ou paixão, ambos de maneira exacerbada. Claro, tais especulações são possíveis apenas se todos os seres humanos, de súbito, se tornassem oniscientes, afinal essa é a realidade que temos, ou não, em mãos.
    Justamente por não sermos oniscientes, o mundo em que vivemos encarrega-se de deixar os objetos de conhecimento prontos para que possamos ver, conhecer, viver, explorar, maltratar, insultar e, talvez, amar. Porém, aquilo que não percebemos, o que não implica apenas em ver, pode se tornar o agente ativo dessa relação epistemológica, sendo nós mesmos os objetos. Assim, existem lugares passivos de serem limpos após o julgamento sobre a sua conservação superficial, mas que dificilmente são percebidos. São nesses lugares onde existem seres, mesmo que inofensivos e microscópicos, capazes de nos observar e fazer de nós seu objeto de apreciação.
    Em um desses lugares, uma pequena fresta dá espaço para uma saída de luz. A pequenez do lugar é considerável, entretanto isso não é motivo para impedir a movimentação do ser em questão. Subindo e descendo freneticamente pelas protuberâncias microscópicas, o seu reconhecimento da geografia do lugar é abundante, entretanto jamais foi capaz de desvendar os mistérios daquela abertura de luz. Talvez fosse impossível o feito, afinal sua vida é mais parecida com um momento ou suspiro para o ser humano.
Apesar de não saber do que se tratava, o apagar e o acender de luzes claramente não incomodava suas atividades habituais, que consistiam em carregar resíduos em suas costas pequenas e frágeis. Entretanto, era inevitável perceber as mudanças repentinas na claridade do ambiente em momentos de descanso. Além dessas mudanças de luminosidade, a sonoridade do lugar também mudava constantemente, não somente devido a acústica do lugar – pois era um ambiente completamente fechado, apenas a abertura para a luz era a exceção –, mas alguns tipos de vibrações sonoras não identificáveis para o seu entendimento faziam parte do seu dia-a-dia. Como se não bastasse, o lugar era acometido por tremores, tão fortes que tiravam o seu corpo do lugar com violência, sendo na maioria das vezes aparado pelas formações rochosas responsáveis pelas penumbras.
    De fato, sua vida mais se parecia com uma prisão à moda dos filmes de Hollywood da década de setenta em diante, carregando pesados volumes sem um propósito especial, privado de conhecer o mundo externo.
    Temos a certeza de que é improvável a polícia de um ser dessa natureza e nessas condições em relação às ações de outros seres. Sua incapacidade para alcançar a abertura e, quem sabe, encontrar novas perspectivas para a sua vida, além da falta de motivação para tal, eram fatores cruciais para que os últimos dias de sua vida fosse ali, no escuro, com pedras e um sol, às vezes presente, outras nem tanto, mas pelo menos enquanto estivera ali, nunca havia se apagado.
    Se não fosse pela imprevisibilidade dos outros seres, o dia de dizer adeus parecia ser adiado, mas foi graças a isso que essa forma de vida pôde alcançar o que sempre ignorou, simplesmente por considerar impossível para a sua capacidade física. Dessa vez, o tremor foi exageradamente forte. Com os solavancos impiedosos do chão em que pisava, fora jogado ao alto diversas vezes. Em um violento impulso, seu corpo, aos poucos, se encontrava com a luz.
    Ao tocar na superfície daquela estranha forma rochosa, percebeu que a luz tinha se tornado várias formas. Cores, sons que costumava perceber, porém mais evidentes agora. Diante de si, um ser de tamanho colossal em relação ao seu movimentava-se de maneira frenética, emitindo sons muito altos e, sem sombra de dúvidas, deixando o observador completamente desorientado. A paralisia tomou conta de seu corpo e não conseguia se mexer em hipótese alguma. Se ele fosse para qualquer um dos lados, cairia em um abismo, a diferença era que um abismo ele já conhecia, o outro não.
    Além desse ser que se movimentava no lugar revelado, havia outro, este mais contido, quieto, comprimido, enquanto aquele continuava a se movimentar. Após mais sons altos e movimentos, o ser retirou um objeto de alguma parte do seu corpo, apontou para o ser contido e, após dois impactos precedidos de sons que o observador jamais havia escutado, ele, que pendia para os abismos perdeu o equilíbrio e, sem ação, mergulhou na parte clara do abismo e finalmente seu corpo se encontrou em um grande mar vermelho.
   Mesmo sem saber o significado de todos aqueles acontecimentos, aquele ser testemunhou um dos atos mais contraditórios que qualquer ser poderia realizar. Enquanto se afogava no mar vermelho e dava seu último suspiro de vida, nunca poderia imaginar que o ser imóvel ao seu lado, apesar de gigante, queria ser como ele: pequeno, imperceptível, observador e inocente. Queria apenas ser uma formiga.

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