quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Isolamento (27/09/2018)


    Antes do sol mostrar os seus raios, uma grande movimentação é iniciada. Por algum motivo, todos recebem o mesmo acessório: uma venda negra. Um por um, ao chegar a vez na fila, além de receber o objeto, é orientado a não tirar em hipótese alguma, pois há riscos irreparáveis. Quando a fila esvazia, o dia pode começar.
   É incrível o fato de que mesmo vendado, o ser humano consegue executar suas tarefas normalmente. Desde tomar a direção de um carro, a levantar a ferramenta pesada. Ele também consegue ler, escrever, conversar, preparar o café da manhã, fazer exercícios físicos e tudo aquilo que um ser humano tem direito abaixo do sol e da lua.
    Entretanto nem todos recebem a venda, simplesmente porque não puderam entrar na fila. Não puderam pois estavam totalmente fora dos requisitos, afinal são necessárias condições adequadas para a manutenção do objeto, simplesmente pelo fato do mesmo custar caro àqueles que fornecem. As condições são muito simples. A venda deve ser mantida em local arejado, aconchegante e inevitavelmente conformista. A venda não pode estar exposta à negligências na manutenção do ambiente, tais como falta de etiqueta, modos de comportamento e descuidos estéticos em relação às vestimentas com as quais a venda será exposta.
    O fato de não receber a venda é determinante para as relações sociais, pois apenas quem possui a venda é capaz de se comunicar da maneira que melhor convém, o que implica na exclusão do restante. Justamente por esse motivo é recomendado que não seja retirada enquanto o sono não vier. De maneira análoga, essa exclusão provoca o fenômeno chamado “isolamento”, e tal fenômeno só é observável quando a venda é retirada. Os fornecedores aconselham a não-observação desse “isolamento”, pois pode causar consequências graves para a ordem da sociedade.
   O “isolamento” possui características muito peculiares, e pode ser entendido com a negação de todos os privilégios daqueles que possuem a venda. Aqueles que possuem a venda nunca passam frio à noite, já os isolados passam. Os que possuem a venda se alimentam regularmente e na hora que bem entendem, já os isolados, em muitos casos, nem mesmo matam a sede. Aqueles que possuem a venda podem agradar, esteticamente e intelectualmente, apenas outros que possuem a venda. Já os isolados são sequer vistos.
   Aqueles que, por algum motivo tolo, retiraram a venda, acabaram tornando-se isolados de forma inevitável. Eu posso afirmar isso com toda certeza, afinal estou nessa condição. Daqui em diante vou relatar a experiência de ter retirado a venda.
Quando acordo, estou sem a venda. A imagem que vejo no espelho não é das mais agradáveis, afinal todos os que usam a venda são bem vestidos e asseados. Rapidamente tomo as ações necessárias para me manter ao nível de todos os outros. De uma maneira geral, todas as ações são iguais para todos os que possuem a venda, desde abrir os olhos até o momento de pegar a fila e receber a venda.
   A fila sempre foi um momento estressante. Além de ser gigantesca, normalmente todas as pessoas estão estressadas ou, de alguma forma, irritadas com algo, apesar de ser apenas o começo do dia. Uma a uma, as vendas são entregues para os seus respectivos usuários. Cada uma possui um manual de usuário com especificações de uso diário, algo bastante inovador para esse tipo de produto. Outro grande diferencial desse suporte ao usuário é o fato de que não existem manuais iguais, visto que a venda é produzida sob medida e mediante uma demanda individual do usuário. Apesar disso, o propósito e o viés da venda e do manual são os mesmos para todas as unidades.
   Após uma longa espera para receber a minha venda, finalmente pude pegá-la e seguir com os mesmos afazeres de sempre, todos eles determinados pela venda. Comecei uma longa caminhada pela rota indicada pelo manual e iniciei o meu dia. Sempre quando caminhava pela rota, não tinha a mínima noção de espaço e de tempo, pois apenas caminhava e não enxergava um palmo à minha frente. Para mim, não fazia a mínima diferença andar em linha reta, subir degraus, descer degraus, parar para descansar, sentar ou andar em círculos, pois após um tempo de uso da venda nenhuma dessas ações são discerníveis.
   Eu ainda não sei o porquê, mas apesar da estranheza do acontecido, não houve remorso ou tristeza, apenas cansaço. Eu decidi correr ao invés de caminhar, ou seja, quebrar o protocolo da venda. O risco de sair da rota é muito grande quando os passos são apressados, pois há limites que separam as rotas e é impossível saber quando começam ou quando acabam, assim como saber o que existe além dos limites da rota.
   O momento não durou dois segundos, porém durou o suficiente para provocar uma imensa dor em meus olhos. Após correr durante uma longa distância, percebi que havia pisado em algo infalso e frágil. Enquanto sentia os meus pés esparramarem algo, o nó responsável por segurar a venda em minha cabeça desatou e flutuou até o solo da rota. A luz ofuscante me cegou e provocou imensa dor. Não consegui abrir os olhos por vários minutos.
   Aos poucos fui recuperando a visão. Inicialmente senti tonturas e uma vontade torturante de voltar para a rota, recolocar a venda e permanecer descansando na rota até acabar o meu dia. Torturante pois por mais que eu tentasse voltar eu não conseguia. Um grande muro de areia se erguia toda vez que eu me aproximava da rota.
   De tanto me concentrar em voltar para a zona de conforto da rota, esqueci-me completamente de que o ambiente externo à rota tornava-se cada vez mais nítido. Após olhar em volta, decidi parar de agir impulsivamente e descansar ali mesmo, naquele ambiente estranho, apesar de sempre ter caminhado em volta dele. Levantei-me após um longo tempo de observação e reposição de fôlego.
    É impossível não perceber a metamorfose imediata ao retirar a venda. Todas as pessoas à minha volta estavam igualmente sem, de olhos nus, olhando fixamente para mim. Os boatos eram verdadeiros: muitos deles não cheiravam bem, outros se cobriam com trapos e também não cheiravam bem. Alguns não conseguiam andar direito, outros nem mesmo conseguiam enxergar, mesmo sem a venda. Outros apenas mantinham a cabeça baixa.
   De alguma forma, senti que todos ali precisavam de ajuda, mas após alguns minutos ali, conversando com cada um deles, percebi o meu siginificado como ser humano, afinal até aquele momento eu não fazia ideia de que no isolamento poderia existir tantas pessoas que sempre olharam para mim enquanto me mantinha omisso e cego para a realidade que de fato fazia sentido no mundo em que vivo. E após ouvir tantas pessoas, percebi também – e essa foi a causa para a minha transformação em isolado – que um dos culpados para toda aquela situação avessa à realidade daqueles que se mantém caminhando pela rota, era eu mesmo.
    Fiquei sem ação, pois agora podia ver todas as pessoas, isoladas e não isoladas, e vi que não era difícil sair da rota, apenas as pessoas vendadas que não queriam. Ignoravam tudo em volta e continuavam os seus caminhos.

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