Antes
do sol mostrar os seus raios, uma grande movimentação é iniciada.
Por algum motivo, todos recebem o mesmo acessório: uma venda negra.
Um por um, ao chegar a vez na fila, além de receber o objeto, é
orientado a não tirar em hipótese alguma, pois há riscos
irreparáveis. Quando a fila esvazia, o dia pode começar.
É
incrível o fato de que mesmo vendado, o ser humano consegue executar
suas tarefas normalmente. Desde tomar a direção de um carro, a
levantar a ferramenta pesada. Ele também consegue ler, escrever,
conversar, preparar o café da manhã, fazer exercícios físicos e
tudo aquilo que um ser humano tem direito abaixo do sol e da lua.
Entretanto
nem todos recebem a venda, simplesmente porque não puderam entrar na
fila. Não puderam pois estavam totalmente fora dos requisitos,
afinal são necessárias condições adequadas para a manutenção do
objeto, simplesmente pelo fato do mesmo custar caro àqueles que
fornecem. As condições são muito simples. A venda deve ser mantida
em local arejado, aconchegante e inevitavelmente conformista. A venda
não pode estar exposta à negligências na manutenção do ambiente,
tais como falta de etiqueta, modos de comportamento e descuidos
estéticos em relação às vestimentas com as quais a venda será
exposta.
O
fato de não receber a venda é determinante para as relações
sociais, pois apenas quem possui a venda é capaz de se comunicar da
maneira que melhor convém, o que implica na exclusão do restante.
Justamente por esse motivo é recomendado que não seja retirada
enquanto o sono não vier. De maneira análoga, essa exclusão
provoca o fenômeno chamado “isolamento”, e tal fenômeno só é
observável quando a venda é retirada. Os fornecedores aconselham a
não-observação desse “isolamento”, pois pode causar
consequências graves para a ordem da sociedade.
O
“isolamento” possui características muito peculiares, e pode ser
entendido com a negação de todos os privilégios daqueles que
possuem a venda. Aqueles que possuem a venda nunca passam frio à
noite, já os isolados passam. Os que possuem a venda se alimentam
regularmente e na hora que bem entendem, já os isolados, em muitos
casos, nem mesmo matam a sede. Aqueles que possuem a venda podem
agradar, esteticamente e intelectualmente, apenas outros que possuem
a venda. Já os isolados são sequer vistos.
Aqueles
que, por algum motivo tolo, retiraram a venda, acabaram tornando-se
isolados de forma inevitável. Eu posso afirmar isso com toda
certeza, afinal estou nessa condição. Daqui em diante vou relatar a
experiência de ter retirado a venda.
Quando
acordo, estou sem a venda. A imagem que vejo no espelho não é das
mais agradáveis, afinal todos os que usam a venda são bem vestidos
e asseados. Rapidamente tomo as ações necessárias para me manter
ao nível de todos os outros. De uma maneira geral, todas as ações
são iguais para todos os que possuem a venda, desde abrir os olhos
até o momento de pegar a fila e receber a venda.
A
fila sempre foi um momento estressante. Além de ser gigantesca,
normalmente todas as pessoas estão estressadas ou, de alguma forma,
irritadas com algo, apesar de ser apenas o começo do dia. Uma a uma,
as vendas são entregues para os seus respectivos usuários. Cada uma
possui um manual de usuário com especificações de uso diário,
algo bastante inovador para esse tipo de produto. Outro grande
diferencial desse suporte ao usuário é o fato de que não existem
manuais iguais, visto que a venda é produzida sob medida e mediante
uma demanda individual do usuário. Apesar disso, o propósito e o
viés da venda e do manual são os mesmos para todas as unidades.
Após
uma longa espera para receber a minha venda, finalmente pude pegá-la
e seguir com os mesmos afazeres de sempre, todos eles determinados
pela venda. Comecei uma longa caminhada pela rota indicada pelo
manual e iniciei o meu dia. Sempre quando caminhava pela rota, não
tinha a mínima noção de espaço e de tempo, pois apenas caminhava
e não enxergava um palmo à minha frente. Para mim, não fazia a
mínima diferença andar em linha reta, subir degraus, descer
degraus, parar para descansar, sentar ou andar em círculos, pois
após um tempo de uso da venda nenhuma dessas ações são
discerníveis.
Eu
ainda não sei o porquê, mas apesar da estranheza do acontecido, não
houve remorso ou tristeza, apenas cansaço. Eu decidi correr ao invés
de caminhar, ou seja, quebrar o protocolo da venda. O risco de sair
da rota é muito grande quando os passos são apressados, pois há
limites que separam as rotas e é impossível saber quando começam
ou quando acabam, assim como saber o que existe além dos limites da
rota.
O
momento não durou dois segundos, porém durou o suficiente para
provocar uma imensa dor em meus olhos. Após correr durante uma longa
distância, percebi que havia pisado em algo infalso e frágil.
Enquanto sentia os meus pés esparramarem algo, o nó responsável
por segurar a venda em minha cabeça desatou e flutuou até o solo da
rota. A luz ofuscante me cegou e provocou imensa dor. Não consegui
abrir os olhos por vários minutos.
Aos
poucos fui recuperando a visão. Inicialmente senti tonturas e uma
vontade torturante de voltar para a rota, recolocar a venda e
permanecer descansando na rota até acabar o meu dia. Torturante pois
por mais que eu tentasse voltar eu não conseguia. Um grande muro de
areia se erguia toda vez que eu me aproximava da rota.
De
tanto me concentrar em voltar para a zona de conforto da rota,
esqueci-me completamente de que o ambiente externo à rota tornava-se
cada vez mais nítido. Após olhar em volta, decidi parar de agir
impulsivamente e descansar ali mesmo, naquele ambiente estranho,
apesar de sempre ter caminhado em volta dele. Levantei-me após um
longo tempo de observação e reposição de fôlego.
É
impossível não perceber a metamorfose imediata ao retirar a venda.
Todas as pessoas à minha volta estavam igualmente sem, de olhos nus,
olhando fixamente para mim. Os boatos eram verdadeiros: muitos deles
não cheiravam bem, outros se cobriam com trapos e também não
cheiravam bem. Alguns não conseguiam andar direito, outros nem mesmo
conseguiam enxergar, mesmo sem a venda. Outros apenas mantinham a
cabeça baixa.
De
alguma forma, senti que todos ali precisavam de ajuda, mas após
alguns minutos ali, conversando com cada um deles, percebi o meu
siginificado como ser humano, afinal até aquele momento eu não
fazia ideia de que no isolamento poderia existir tantas pessoas que
sempre olharam para mim enquanto me mantinha omisso e cego para a
realidade que de fato fazia sentido no mundo em que vivo. E após
ouvir tantas pessoas, percebi também – e essa foi a causa para a
minha transformação em isolado – que um dos culpados para toda
aquela situação avessa à realidade daqueles que se mantém
caminhando pela rota, era eu mesmo.
Fiquei
sem ação, pois agora podia ver todas as pessoas, isoladas e não
isoladas, e vi que não era difícil sair da rota, apenas as pessoas
vendadas que não queriam. Ignoravam tudo em volta e continuavam os
seus caminhos.

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