*** Essa é uma série de contos, na qual eu vou lançando novas partes (talvez) em dias alternados, espero que gostem
Queda
A alvorada é intensa, muito intensa. Os primeiros raios de luz do dia atingem diretamente aquelas aberturas, bem estreitas, que separam as pálpebras, fazendo com que a primeira visão do seu dia seja a circunferência do sol. Ao rolar para a direita, sentiu a brisa da manhã tocar o seu rosto, mas também sentiu que se rolasse mais alguns centímetros cairia de sua cama. O mesmo para o seu lado esquerdo. Decidiu então que era hora de acordar.
Com os pés fixos na lateral da cama, levantou, esticou os braços e dessa vez cada parte do seu corpo recebeu rajadas de vento. Não sentiu necessidade de fazer as coisas próprias da manhã, apenas se dirigiu ao andar de cima. Com um pouco de força para deixar o corpo subir a elevação, levou as mãos às costas e se esticou uma vez mais, bocejando com mais força enquanto desafiava o sol ao abrir os olhos e encará-lo. Sentou onde estava mesmo, cruzou as pernas e parou para observar em volta.
Branco, tudo branco, com exceção do céu e do brilho do sol. Apesar dessa descrição, a sensação de lugar vazio não passava pela sua cabeça. Diferente do que muitos podem pensar, o fato de exergar apenas o branco abaixo do céu passava uma sensação de infinito, ainda mais evidente com as protuberâncias que as formas brancas deixavam no percorrer do olhar. As sombras formadas a partir dessas ondulações pareciam esconder algo, e como eram muitas que pareciam fazer o mesmo, era quase impossível ter curiosidade o suficiente para verificar todas elas. Assim, mesmo que nunca enxergasse alguém perto de si, a sensação de que sempre havia algo que poderia aparecer a qualquer momento o acompanhava.
Sua rotina era bem simples na verdade. Não tinha algo para comer quando acordava, até porque se ele deixasse algo guardado na noite anterior para o dia seguinte, não estaria mais lá. Por vários motivos: alguns animais poderiam pegar ou simplesmente cairiam do lugar onde deixou. Devo dizer também que sua casa era muito peculiar: dependendo da hora do dia, ela poderia estar em um lugar e, depois de alguns minutos, ou estar em outro lugar ou simplesmente ter desaparecido. Então, guardar qualquer tipo de objeto sólido não era realmente uma boa ideia. Se quisesse se alimentar, teria que sair de casa, o que era sempre motivo de pânico, mas tinha que fazer. Para isso, procurava no chão algum vestígio de fragilidade, para que não fosse pego de surpresa quando colocasse o pé, o que nunca dava certo pois, dada a condição descrita de sua casa, um ponto que identificara como frágil poderia estar, em poucos segundos, bem abaixo dos seus pés. E bem, foi isso que aconteceu.
A queda sempre é bem violenta. Tinha que tomar muito cuidado para que suas roupas não saíssem do seu corpo, afinal o vento vindo da direção da queda era muito forte, chegando a ser cortante. Para não ficar cego, sempre fechava os olhos enquanto caía ou olhava para cima, observando sua casa se distanciar. Na única vez que conseguiu olhar para baixo enquanto caía, pôde testemunhar aquilo que era minúsculo ao ver de muito longe, crescer de forma absurda na medida em que se aproxima. Os campos verdes separados em quadrados bem delimitados, enquanto boa parte da paisagem é dominada pelo cinza das construções. Se olhasse para frente, poderia enxergar no horizonte não mais o branco infinito com o qual convive, e sim o chão duro, muitas vezes impermeável, presente em toda direção possível.
Apesar de todo o caminho vertical feito de maneira brusca, sempre conseguia regular o peso do seu corpo para que chegasse de maneira segura no solo. Ele não sabia voar obviamente, porém de tanto descer de sua casa dessa forma, desenvolveu essa habilidade de mudar o peso do corpo ao seu gosto. Dessa vez, o lugar em que parou não tinha muitas pessoas em volta, e mesmo com algumas tendo observado a sua chegada, não ficaram assustadas ou curiosas ao extremo. Nas primeiras vezes que fez isso, a reação das pessoas não era nada normal.
A primeira vez em específico aconteceu em um lugar bem isolado da civilização, com apenas alguns animais tendo visto sua descida. Porém, quando desceu em um lugar com pessoas, devo dizer que eram muitas reunidas, tudo mudou em relação ao que era possível ou não para um ser humano fazer.
Nenhum comentário:
Postar um comentário