Templo
Profanado
“Fique
bem” foram as últimas palavras dele. A cama do hospital deveria me manter
aquecida, ou pelo menos me passar tal sensação, porém meus sentidos não paravam
de me alertar sobre o perigo do conforto. Nossas vidas eram tão perfeitas,
todos os nossos sonhos estavam sendo depositados em nossas capacidades como
adultos, formados em áreas que sempre queríamos atuar. Poucos minutos foram o
suficiente para nos fazer desistir de tudo isso.
Assim
como vasos raros, ou escritos de grandes pensadores, o corpo de um ser humano
deve ser preservado. Personalidade, sentimentos, caráter, moral, tudo isso está
concentrado em um indivíduo que mantém contato com o meio de convivência, se
tornando algo mais que especial para diversos tipos de pessoas que compartilham
do mesmo ar. Saber entender uma pessoa é algo realmente complicado, então, a
maneira mais rápida para compreender o que está subentendido nas entrelinhas de
um ser é amando-o.
Quando
conheci Cesar, meu mundo se transformou em algo totalmente diferente do que eu
estava acostumada. Minhas ações tão egoístas começaram a se converter para o
lado benéfico, sendo dedicadas para além do meu mundo. Conversar com ele era o
meu alívio diário, suas palavras tão serenas e curtas eram o suficiente para me
convencer de que os meus conceitos tão superficiais não passavam de mera
subjetividade. Tocar em sua mão quente e acolhedora me fazia a mulher mais
feliz do mundo.
Cesar
estudava em uma universidade federal, enquanto eu já havia me formado em
medicina. Prestei vários cursos após a minha graduação, e entre eles, conheci
Cesar participando de um seminário sobre anatomia. Parei para observar a
dialética dele. Seu discurso sobre as importâncias de manter a boa aparência
eram tão convincentes que mesmo não possuindo grande relação com anatomia,
ainda assim se tornava algo totalmente cabível a qualquer tipo de assunto. No
fim do seminário me dirigi ao inteligente rapaz para cumprimentá-lo. Havia um
banco de madeira estofada atrás de nós, onde nos sentamos e começamos a
conversar.
Discutimos
sobre vários assuntos, mesmo sendo aleatórios demais. A conversa durou horas e
horas, porém nem ao menos percebemos que a universidade havia sido fechada para
os alunos. Trocamos telefones e endereços, logo depois nos despedimos. Cesar
não era um rapaz comum, até porque sua sensibilidade excedia os limites para um
estudante de medicina.
No
primeiro encontro, Cesar e eu apenas discutimos sobre assuntos da medicina, da
filosofia e etc., mas nunca tocávamos em namoro ou casamento. Percebi de
imediato que Cesar não tinha segundas intenções quando proferia suas palavras.
A pureza de suas ações não parecia ser possível, tendo em vista o estereótipo
de homem que temos nos dias atuais. A cada assunto discutido, nossos
pensamentos entravam em constante sintonia, conectando-os aos poucos.
Ás vezes, Cesar visitava-me constantemente,
buscando materiais de estudo e uma boa e longa conversa. Mesmo eu estando
sozinha com ele em um cubículo, suas atitudes não eram nem um pouco sugestivas.
Comecei a alimentar a ideia de homossexualidade, porém não era cabível ao seu
comportamento tão elegante e cavalheiresco. Quando eu o perguntava sobre amor e
outras coisas similares, Cesar sempre dizia com a mesma calma de sempre: “O
amor é como um templo”.
Um
templo é construído para ser visitado e servir de lugar para adoração de algum
ser. Muitos classificam o amor como um templo, afinal, é necessário algum tipo
de conceito para desenvolver uma crença. A grande diferença é que o amor não
possui conceito, e sim, algo que supera qualquer tipo de manifestação
intelectual, a atitude.
Os
nossos encontros se tornaram cada vez mais frequentes e prazerosos. O sexo não
era necessário para consumar a nossa relação, apenas as atitudes simbólicas de
cada um diziam tudo o que era preciso para se entender. Caminhávamos pelas ruas
de mãos dadas, sem precisar saber um destino prévio, apenas por querer estar
juntos. Meu trabalho como pediatra em um posto de saúde me satisfazia como
profissional, minha aparência me satisfazia como mulher, meu namorado me satisfazia
como ser humano.
Nossas
promessas eram tão profundas e tão simples. Quando começamos a falar de amor
abertamente, desenvolvemos de maneira rápida alguns de nossos sentimentos
recíprocos. Não me cansava de tocar os seus lábios com os meus, e muito menos
de tocar sua pele que me cobria com afagos calorosos.
Quando
se formou, Cesar foi convidado por uma clínica conhecida em nosso país. Estava
garantido como neurocirurgião, afinal, era o estudante mais promissor entre os
calouros considerados como gênios. Pediu para que eu o esperasse no parque,
tomando cuidado para não perder a paciência, pois ia me fazer esperar.
Sentei-me
em um dos bancos do parque. As flores dos Ipês amarelos tocavam os meus cabelos
e cobriam aquele lugar com uma luz natural e sublime. O córrego que cortava os
jardins do parque enaltecia a beleza daquele cenário tão divino, sendo um éden
em meio às constantes alterações do homem sobre aquela pobre natureza. Enquanto
os ventos acariciavam minha pele, algo caloroso se aproximava. Entre os Ipês,
consegui distinguir outro aroma: eram rosas. Juntamente com aroma das rosas, eu
conseguia ouvir os passos lentos e calmos de alguém que não queria me
incomodar. Essa pessoa encostou suas mãos em meu rosto, fazendo carícias e me
deixando corada. Quando me virei para ver quem era, tive uma visão do céu.
Seu
terno preto e elegantíssimo dizia completamente quem ele era. Seu perfume
suave, levemente distribuído pelo seu corpo me deixava tonta de tanto êxtase e
euforia. Carregava um buquê de rosas vermelhas todo enfeitado por detalhes
púrpuros, minha cor predileta. Recebi de bom grado as flores e o abracei,
recompensando-o com um beijo caloroso e demorado. Sentamos-nos no banco do
parque e ficamos admirando um ao outro através de nossas palavras. Estávamos de
mãos dadas, olhando a corrente das águas, observando o voo dos pássaros,
ouvindo as folhas chacoalharem após uma brisa acolhedora. Era o fim de tarde
mais perfeito de toda a minha vida.
Subitamente
levantou-se. Segurou-me pela mão, levando-me para lugares bem mais belos: os
seus braços, o seu peito. Abraçados e completamente apaixonados, Cesar recitou
poemas e fez declarações assim como um autêntico romântico. Após alguns
minutos, Cesar levou a mão direita ao bolso do seu terno, retirando uma caixinha
de cor roxa. Descobri o que era sem mesmo abri-la.
Duas
alianças prateadas, como um símbolo de noivado. Cesar estava decidido a
casar-se comigo, pois suas ações diziam muito mais do que suas palavras
perfeitas. Ele se ajoelhou, abriu a pequena caixa e nem mesmo disse frases como
“Quero sua mão”, ou “Case-se comigo”. Colocou as alianças lentamente, logo
depois voltou a me abraçar. Não disse uma única palavra desde o momento em que
colocara a aliança em minha mão, apenas queria continuar me acariciando
enquanto a luz do sol clareava ainda mais os nossos sentimentos e certezas da
vida.
Cesar
me deixou em casa após o encontro inesquecível. Despediu-se com um beijo em
minha testa, deixando-me completamente entregue aos seus encantos. Eu não
queria, em hipótese alguma, que Cesar se afastasse de mim assim como muitos
homens assim fizeram. A diferença era que eu tinha certeza que ele não faria
isso. São momento assim que confundem nossos conceitos pessoais, nos colocando
em contradição com nossa própria personalidade, porém havia alguém que garantia
minha estabilidade emocional.
Quem
poderia imaginar tamanha mudança. A insegurança tomava conta de mim todas as
noites, mesmo eu estimulando meu lado otimista. Meus sonhos passaram a ter relação,
unicamente, com Cesar e o nosso futuro como casados. Porém meus pensamentos não
deixavam de ser sistemáticos e racionalistas demais. Eu comecei a pensar nas
diversas possibilidades onde eu e Cesar poderíamos nos separar, mas logo me
encontrava numa posição contrária. Até uma revolução acontecer. Algo que
mudaria tudo, inclusive nosso modo de viver.
Meus
turnos começaram a se prolongar. A falta de médicos estava cada vez mais
crescente, necessitando de pessoas que cumprissem horas a mais de trabalho. Apesar
de ser pediatra, meu trabalho não era pouco, afinal, crianças precisam de
cuidados especiais. Ás vezes eu permanecia em meu consultório durante as frias
madrugadas, terminando relatórios, levantando medicamentos, revisando
receituários. Minha cidade era uma das mais perigosas do estado, mesmo
possuindo pontos positivos. Quando as madrugadas chegavam, as ruelas viravam
palcos para homicídios e consumo de drogas pesadas. Eu sempre tinha a certeza
de que o meu Cesar estaria ali para me levar para casa com seu humilde carro,
tendo um pouco mais de segurança ao voltar. Porém ele não apareceu naquela
noite.
Tive
que voltar para casa sozinha. Eu não tinha a opção de dormir no consultório,
pois o posto de saúde deveria ser fechado. Ao vestir meu casaco para me expor
ao frio, tive uma sensação horrível, um grande mal-estar psicológico. Talvez
pelo fato de ter que dar as caras para prostitutas e dependentes químicos,
entretanto me mantive segura para voltar para casa. As ruas estavam desertas
quando olhávamos apenas para o horizonte das pistas, porém, ao olhar para os
becos entre os edifícios, tínhamos outro ponto de vista sobre “cidade
civilizada”. Crianças aniquilando sua infância tão preciosa. Mulheres cedendo
às tentações das drogas, do álcool e do sexo ilícito. Homens esquecidos pelo
resto da humanidade, procurando cegamente algo para sustentar seus vícios tão
deploráveis. O meu mal-estar estava sendo justificado.
A
escuridão aumentava à medida que eu caminhava pelas ruas. O atalho que eu
costumava pegar estava tomado por um breu tenebroso e tentador. Digo tentador
porque o meu desejo maior era o de chegar a minha casa com segurança. Não sabia
se, seguindo aquele caminho, eu poderia chegar a salvo em casa, porém era o
meio mais rápido. Hesitei por alguns instantes, temendo que algo ruim pudesse
acontecer. O medo, juntamente com a necessidade, me empurrou para a beira do
abismo.
Meus
passos estavam carregados de desconfiança. Minhas pernas tremiam de frio e de
temor. O caminho escuro permitia apenas a visão de algumas folhas dos arbustos
próximos. Estreito e sem iluminação, aquele atalho limitado pelas colunas de
folhas de jardim, sempre terminava em uma rua próxima da minha casa. Alguns
postes, ora acendiam, ora apagavam, sendo uma das maiores reclamações da população.
Ao caminhar cerca de trinta metros, meus ouvidos aguçados perceberam um ruído
entre as folhas à frente. Andei um pouco mais para saber o que era.
O
silêncio tomou conta daquele lugar completamente. Pensei que poderia ser algum
vento repentino que pudesse ter agitado algumas folhas, porém não senti nem
mesmo uma leve brisa alcançar minha pele. Olhei para cima e percebi que o poste
estava para acender a lâmpada. Uma luz fraca começou a ser emitida lentamente,
tornando-se cada vez mais intensa. Desviei minha atenção para a lâmpada por
alguns instantes, até que ela fosse completamente acendida. Quando voltei a
olhar para o caminho, a face de um homem me encara de maneira sádica e
perversa. Suas mãos ásperas me jogaram ao chão, me deixando totalmente aterrorizada
e desnorteada.
Senti uma dor
imensa ao ser lançada para o chão. O homem apertou minha face com seus dedos de
forma grosseira e hostil, fazendo com que minhas mandíbulas sentissem uma dor
insuportável. Eu não conseguia descrever sua face porque a luz daquele poste
defeituoso piscava freneticamente, intensificando a cena da qual eu queria
apenas fugir, não me importando qual caminho eu tomaria, porém eu não conseguia
me livrar do selvagem sobre mim. Ele rasgou minhas roupas violentamente, jogando-as
para o lado como lixo. Apertou meus seios com as unhas até arrancar meus gritos
de dor que saíam inconscientemente. Os gritos o forçaram a tapar minha boca, me
deixando sem a respiração adequada. Encostou sua boca fétida em meu sexo,
mordendo em volta da região pélvica. Sua língua áspera arranhava minha pele,
enquanto me torturava com seus dedos introduzidos em meu corpo nu e violentado.
Seus “beijos” em meus seios marcados pelas suas unhas apenas aumentavam a dor.
Voltou a apertar minhas mandíbulas enquanto minhas lágrimas de dor caíam
naquele beco estreito e cercado por arbustos. Golpeava-me com todas as suas
forças quando via que eu queria fugir. Meus braços e pernas balançavam
violentamente enquanto ele continuava a ferir meu hímen ainda não perfurado.
Ele retirou suas
roupas de baixo enquanto me segurava com agressividade pelo pescoço. Seu falo
era asqueroso e fedido. Introduziu-o enquanto eu tentava resistir com chutes
inúteis. Seus movimentos dentro de mim sugavam minhas energias para lutar.
Enquanto sentia prazer com aquilo, minha respiração ficou cada vez mais lenta.
Senti que não viveria por muito mais tempo. Aquele homem desconhecido feria-me
por dentro fisicamente, ao mesmo tempo em que exterminava com o ser dentro de
mim.
Ao terminar, o
homem me segurou pela cintura e me levou a um córrego próximo, deixando meu
corpo inconsciente flutuar sobre a água. O fluxo me levou á uma margem coberta
por uma relva macia. Mesmo estando inconsciente, eu conseguia abrir os olhos e
enxergar as coisas, porém não conseguia defini-las. Hoje sei que eram lindos
Ipês amarelos.
Quando eu acordei,
estava em uma cama do hospital geral da minha cidade. Observei os detalhes em
volta. Havia tubos penetrando meu corpo, fios captando impulsos nervosos. Meu
rosto estava enfaixado, coberto de feridas. Cesar estava sentado, olhando
perplexamente para mim. O herói que eu tanto esperei não fora me buscar naquela
madrugada, estando arrependido por não ter cumprido o seu papel como alma
gêmea. Levantou-se da cadeira e veio em minha direção. Tentei dizer algo a ele,
porém as palavras não saíam. Minha visão começou a escurecer lentamente
enquanto eu observava seus olhos carregados de lágrimas. Sua mão estava fria
agora, não me passava segurança mais. Senti uma gota de sua lágrima cair em
minha mão antes de minha visão escurecer completamente, ao mesmo tempo, meu
único sentido ainda ativo ouvira suas últimas palavras.
Por: Anderson Vieira do Nascimento
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