sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Templo Profanado (10/01/15)



Templo Profanado

            “Fique bem” foram as últimas palavras dele. A cama do hospital deveria me manter aquecida, ou pelo menos me passar tal sensação, porém meus sentidos não paravam de me alertar sobre o perigo do conforto. Nossas vidas eram tão perfeitas, todos os nossos sonhos estavam sendo depositados em nossas capacidades como adultos, formados em áreas que sempre queríamos atuar. Poucos minutos foram o suficiente para nos fazer desistir de tudo isso.
            Assim como vasos raros, ou escritos de grandes pensadores, o corpo de um ser humano deve ser preservado. Personalidade, sentimentos, caráter, moral, tudo isso está concentrado em um indivíduo que mantém contato com o meio de convivência, se tornando algo mais que especial para diversos tipos de pessoas que compartilham do mesmo ar. Saber entender uma pessoa é algo realmente complicado, então, a maneira mais rápida para compreender o que está subentendido nas entrelinhas de um ser é amando-o.
            Quando conheci Cesar, meu mundo se transformou em algo totalmente diferente do que eu estava acostumada. Minhas ações tão egoístas começaram a se converter para o lado benéfico, sendo dedicadas para além do meu mundo. Conversar com ele era o meu alívio diário, suas palavras tão serenas e curtas eram o suficiente para me convencer de que os meus conceitos tão superficiais não passavam de mera subjetividade. Tocar em sua mão quente e acolhedora me fazia a mulher mais feliz do mundo.
            Cesar estudava em uma universidade federal, enquanto eu já havia me formado em medicina. Prestei vários cursos após a minha graduação, e entre eles, conheci Cesar participando de um seminário sobre anatomia. Parei para observar a dialética dele. Seu discurso sobre as importâncias de manter a boa aparência eram tão convincentes que mesmo não possuindo grande relação com anatomia, ainda assim se tornava algo totalmente cabível a qualquer tipo de assunto. No fim do seminário me dirigi ao inteligente rapaz para cumprimentá-lo. Havia um banco de madeira estofada atrás de nós, onde nos sentamos e começamos a conversar.
            Discutimos sobre vários assuntos, mesmo sendo aleatórios demais. A conversa durou horas e horas, porém nem ao menos percebemos que a universidade havia sido fechada para os alunos. Trocamos telefones e endereços, logo depois nos despedimos. Cesar não era um rapaz comum, até porque sua sensibilidade excedia os limites para um estudante de medicina.
            No primeiro encontro, Cesar e eu apenas discutimos sobre assuntos da medicina, da filosofia e etc., mas nunca tocávamos em namoro ou casamento. Percebi de imediato que Cesar não tinha segundas intenções quando proferia suas palavras. A pureza de suas ações não parecia ser possível, tendo em vista o estereótipo de homem que temos nos dias atuais. A cada assunto discutido, nossos pensamentos entravam em constante sintonia, conectando-os aos poucos.
             Ás vezes, Cesar visitava-me constantemente, buscando materiais de estudo e uma boa e longa conversa. Mesmo eu estando sozinha com ele em um cubículo, suas atitudes não eram nem um pouco sugestivas. Comecei a alimentar a ideia de homossexualidade, porém não era cabível ao seu comportamento tão elegante e cavalheiresco. Quando eu o perguntava sobre amor e outras coisas similares, Cesar sempre dizia com a mesma calma de sempre: “O amor é como um templo”.
            Um templo é construído para ser visitado e servir de lugar para adoração de algum ser. Muitos classificam o amor como um templo, afinal, é necessário algum tipo de conceito para desenvolver uma crença. A grande diferença é que o amor não possui conceito, e sim, algo que supera qualquer tipo de manifestação intelectual, a atitude.

            Os nossos encontros se tornaram cada vez mais frequentes e prazerosos. O sexo não era necessário para consumar a nossa relação, apenas as atitudes simbólicas de cada um diziam tudo o que era preciso para se entender. Caminhávamos pelas ruas de mãos dadas, sem precisar saber um destino prévio, apenas por querer estar juntos. Meu trabalho como pediatra em um posto de saúde me satisfazia como profissional, minha aparência me satisfazia como mulher, meu namorado me satisfazia como ser humano.
            Nossas promessas eram tão profundas e tão simples. Quando começamos a falar de amor abertamente, desenvolvemos de maneira rápida alguns de nossos sentimentos recíprocos. Não me cansava de tocar os seus lábios com os meus, e muito menos de tocar sua pele que me cobria com afagos calorosos.
            Quando se formou, Cesar foi convidado por uma clínica conhecida em nosso país. Estava garantido como neurocirurgião, afinal, era o estudante mais promissor entre os calouros considerados como gênios. Pediu para que eu o esperasse no parque, tomando cuidado para não perder a paciência, pois ia me fazer esperar.
            Sentei-me em um dos bancos do parque. As flores dos Ipês amarelos tocavam os meus cabelos e cobriam aquele lugar com uma luz natural e sublime. O córrego que cortava os jardins do parque enaltecia a beleza daquele cenário tão divino, sendo um éden em meio às constantes alterações do homem sobre aquela pobre natureza. Enquanto os ventos acariciavam minha pele, algo caloroso se aproximava. Entre os Ipês, consegui distinguir outro aroma: eram rosas. Juntamente com aroma das rosas, eu conseguia ouvir os passos lentos e calmos de alguém que não queria me incomodar. Essa pessoa encostou suas mãos em meu rosto, fazendo carícias e me deixando corada. Quando me virei para ver quem era, tive uma visão do céu.
            Seu terno preto e elegantíssimo dizia completamente quem ele era. Seu perfume suave, levemente distribuído pelo seu corpo me deixava tonta de tanto êxtase e euforia. Carregava um buquê de rosas vermelhas todo enfeitado por detalhes púrpuros, minha cor predileta. Recebi de bom grado as flores e o abracei, recompensando-o com um beijo caloroso e demorado. Sentamos-nos no banco do parque e ficamos admirando um ao outro através de nossas palavras. Estávamos de mãos dadas, olhando a corrente das águas, observando o voo dos pássaros, ouvindo as folhas chacoalharem após uma brisa acolhedora. Era o fim de tarde mais perfeito de toda a minha vida.
            Subitamente levantou-se. Segurou-me pela mão, levando-me para lugares bem mais belos: os seus braços, o seu peito. Abraçados e completamente apaixonados, Cesar recitou poemas e fez declarações assim como um autêntico romântico. Após alguns minutos, Cesar levou a mão direita ao bolso do seu terno, retirando uma caixinha de cor roxa. Descobri o que era sem mesmo abri-la.
            Duas alianças prateadas, como um símbolo de noivado. Cesar estava decidido a casar-se comigo, pois suas ações diziam muito mais do que suas palavras perfeitas. Ele se ajoelhou, abriu a pequena caixa e nem mesmo disse frases como “Quero sua mão”, ou “Case-se comigo”. Colocou as alianças lentamente, logo depois voltou a me abraçar. Não disse uma única palavra desde o momento em que colocara a aliança em minha mão, apenas queria continuar me acariciando enquanto a luz do sol clareava ainda mais os nossos sentimentos e certezas da vida.
            Cesar me deixou em casa após o encontro inesquecível. Despediu-se com um beijo em minha testa, deixando-me completamente entregue aos seus encantos. Eu não queria, em hipótese alguma, que Cesar se afastasse de mim assim como muitos homens assim fizeram. A diferença era que eu tinha certeza que ele não faria isso. São momento assim que confundem nossos conceitos pessoais, nos colocando em contradição com nossa própria personalidade, porém havia alguém que garantia minha estabilidade emocional.
            Quem poderia imaginar tamanha mudança. A insegurança tomava conta de mim todas as noites, mesmo eu estimulando meu lado otimista. Meus sonhos passaram a ter relação, unicamente, com Cesar e o nosso futuro como casados. Porém meus pensamentos não deixavam de ser sistemáticos e racionalistas demais. Eu comecei a pensar nas diversas possibilidades onde eu e Cesar poderíamos nos separar, mas logo me encontrava numa posição contrária. Até uma revolução acontecer. Algo que mudaria tudo, inclusive nosso modo de viver.
            Meus turnos começaram a se prolongar. A falta de médicos estava cada vez mais crescente, necessitando de pessoas que cumprissem horas a mais de trabalho. Apesar de ser pediatra, meu trabalho não era pouco, afinal, crianças precisam de cuidados especiais. Ás vezes eu permanecia em meu consultório durante as frias madrugadas, terminando relatórios, levantando medicamentos, revisando receituários. Minha cidade era uma das mais perigosas do estado, mesmo possuindo pontos positivos. Quando as madrugadas chegavam, as ruelas viravam palcos para homicídios e consumo de drogas pesadas. Eu sempre tinha a certeza de que o meu Cesar estaria ali para me levar para casa com seu humilde carro, tendo um pouco mais de segurança ao voltar. Porém ele não apareceu naquela noite.
            Tive que voltar para casa sozinha. Eu não tinha a opção de dormir no consultório, pois o posto de saúde deveria ser fechado. Ao vestir meu casaco para me expor ao frio, tive uma sensação horrível, um grande mal-estar psicológico. Talvez pelo fato de ter que dar as caras para prostitutas e dependentes químicos, entretanto me mantive segura para voltar para casa. As ruas estavam desertas quando olhávamos apenas para o horizonte das pistas, porém, ao olhar para os becos entre os edifícios, tínhamos outro ponto de vista sobre “cidade civilizada”. Crianças aniquilando sua infância tão preciosa. Mulheres cedendo às tentações das drogas, do álcool e do sexo ilícito. Homens esquecidos pelo resto da humanidade, procurando cegamente algo para sustentar seus vícios tão deploráveis. O meu mal-estar estava sendo justificado.
            A escuridão aumentava à medida que eu caminhava pelas ruas. O atalho que eu costumava pegar estava tomado por um breu tenebroso e tentador. Digo tentador porque o meu desejo maior era o de chegar a minha casa com segurança. Não sabia se, seguindo aquele caminho, eu poderia chegar a salvo em casa, porém era o meio mais rápido. Hesitei por alguns instantes, temendo que algo ruim pudesse acontecer. O medo, juntamente com a necessidade, me empurrou para a beira do abismo.
            Meus passos estavam carregados de desconfiança. Minhas pernas tremiam de frio e de temor. O caminho escuro permitia apenas a visão de algumas folhas dos arbustos próximos. Estreito e sem iluminação, aquele atalho limitado pelas colunas de folhas de jardim, sempre terminava em uma rua próxima da minha casa. Alguns postes, ora acendiam, ora apagavam, sendo uma das maiores reclamações da população. Ao caminhar cerca de trinta metros, meus ouvidos aguçados perceberam um ruído entre as folhas à frente. Andei um pouco mais para saber o que era.
            O silêncio tomou conta daquele lugar completamente. Pensei que poderia ser algum vento repentino que pudesse ter agitado algumas folhas, porém não senti nem mesmo uma leve brisa alcançar minha pele. Olhei para cima e percebi que o poste estava para acender a lâmpada. Uma luz fraca começou a ser emitida lentamente, tornando-se cada vez mais intensa. Desviei minha atenção para a lâmpada por alguns instantes, até que ela fosse completamente acendida. Quando voltei a olhar para o caminho, a face de um homem me encara de maneira sádica e perversa. Suas mãos ásperas me jogaram ao chão, me deixando totalmente aterrorizada e desnorteada.
           
Senti uma dor imensa ao ser lançada para o chão. O homem apertou minha face com seus dedos de forma grosseira e hostil, fazendo com que minhas mandíbulas sentissem uma dor insuportável. Eu não conseguia descrever sua face porque a luz daquele poste defeituoso piscava freneticamente, intensificando a cena da qual eu queria apenas fugir, não me importando qual caminho eu tomaria, porém eu não conseguia me livrar do selvagem sobre mim. Ele rasgou minhas roupas violentamente, jogando-as para o lado como lixo. Apertou meus seios com as unhas até arrancar meus gritos de dor que saíam inconscientemente. Os gritos o forçaram a tapar minha boca, me deixando sem a respiração adequada. Encostou sua boca fétida em meu sexo, mordendo em volta da região pélvica. Sua língua áspera arranhava minha pele, enquanto me torturava com seus dedos introduzidos em meu corpo nu e violentado. Seus “beijos” em meus seios marcados pelas suas unhas apenas aumentavam a dor. Voltou a apertar minhas mandíbulas enquanto minhas lágrimas de dor caíam naquele beco estreito e cercado por arbustos. Golpeava-me com todas as suas forças quando via que eu queria fugir. Meus braços e pernas balançavam violentamente enquanto ele continuava a ferir meu hímen ainda não perfurado.
Ele retirou suas roupas de baixo enquanto me segurava com agressividade pelo pescoço. Seu falo era asqueroso e fedido. Introduziu-o enquanto eu tentava resistir com chutes inúteis. Seus movimentos dentro de mim sugavam minhas energias para lutar. Enquanto sentia prazer com aquilo, minha respiração ficou cada vez mais lenta. Senti que não viveria por muito mais tempo. Aquele homem desconhecido feria-me por dentro fisicamente, ao mesmo tempo em que exterminava com o ser dentro de mim.
Ao terminar, o homem me segurou pela cintura e me levou a um córrego próximo, deixando meu corpo inconsciente flutuar sobre a água. O fluxo me levou á uma margem coberta por uma relva macia. Mesmo estando inconsciente, eu conseguia abrir os olhos e enxergar as coisas, porém não conseguia defini-las. Hoje sei que eram lindos Ipês amarelos.







Quando eu acordei, estava em uma cama do hospital geral da minha cidade. Observei os detalhes em volta. Havia tubos penetrando meu corpo, fios captando impulsos nervosos. Meu rosto estava enfaixado, coberto de feridas. Cesar estava sentado, olhando perplexamente para mim. O herói que eu tanto esperei não fora me buscar naquela madrugada, estando arrependido por não ter cumprido o seu papel como alma gêmea. Levantou-se da cadeira e veio em minha direção. Tentei dizer algo a ele, porém as palavras não saíam. Minha visão começou a escurecer lentamente enquanto eu observava seus olhos carregados de lágrimas. Sua mão estava fria agora, não me passava segurança mais. Senti uma gota de sua lágrima cair em minha mão antes de minha visão escurecer completamente, ao mesmo tempo, meu único sentido ainda ativo ouvira suas últimas palavras.




Por: Anderson Vieira do Nascimento

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