Núpcias
Sangrenta
O
canto dos pássaros anunciava o início de um novo matrimônio. Não era necessário
que estivessem em um altar e cercados por pessoas desejando-lhes anos
maravilhosos de união, pelo contrário, estavam naquele lugar sozinhos e
totalmente desorientados.
As
ruas não aceitavam mais que algum ser estivesse vagando em busca de diversão. A
madrugada fria e solitária fazia com que muitos achassem abrigo, um momento de
descanso para pessoas que não possuíam lar. Porém, ainda há pessoas que buscam
algo a mais, um preenchimento peculiar de seus nobres e incompreensíveis
corações.
John
caminhava lentamente sobre o asfalto, como se estivesse procurando um lugar
para encostar-se. Sua perna estava ferida em diversos pontos, podíamos dizer
que estava quebrada, entretanto o homem ainda mantinha-se em pé. John perdia um
pouco de sua determinação a cada passo que dava, o que lhe fez ceder
lentamente. Seus movimentos limitaram-se a passos curtos e cada vez mais
dolorosos, perdendo a locomoção de sua perna direita.
Seu
corpo caído não chamava a atenção de ninguém. Os mendigos não se importavam com
pessoas miseráveis, afinal, todos eles já tiveram que passar por situações
semelhantes, seja fisicamente, seja mentalmente. John não tinha forças para
chamar alguém, ele poderia ter ligado para os bombeiros ou chamar uma
ambulância, pois estava com o celular no bolso direito, porém não o fez,
fechando os olhos lentamente. Até que John identifica alguém caminhando em sua
direção. Percebeu que essa pessoa não estava descalça, afinal, cada passo
ecoava pelos becos e pelas ruas desertas. Essa pessoa cessou os passos e
observou, de perto, o corpo caído de John, estendendo sua mão para ele.
O
moribundo não reagia, apenas chocava a sua cabeça com o asfalto toda vez que
tentava erguer-se. A mão estendida tocou em seu queixo, levantando sua face
para cima. Era uma mulher. Seu olhar de desprezo expressava todo tipo de
sentimento repulsivo, ao mesmo tempo em que expressava culpa por não ter
encontrado aquele homem mais cedo. Ela o levantou, de modo a carregá-lo em suas
costas. Caminhou alguns metros com ele e abriu uma porta.
Ela
descansou o corpo de John em um sofá, logo retirou sua roupa e apanhou uma
toalha. Estava nua, porém não se importou com o homem em sua casa, mostrando
uma maturidade distinta das demais mulheres que John vira até ali. Seu nome era
Suzan.
A desinibida mulher
foi em direção ao banheiro, deixando a toalha suspensa na maçaneta, girou o
registro do simples chuveiro e permitiu que a água morna tirasse as impurezas
adquiridas durante o dia. Os cabelos ruivos de Suzan eram longos e lisos,
apesar de molhar com água morna todos os dias. Sua pele macia e perfumada fazia
um imenso contraste com os olhos negros e vivos. Seu corpo perfeito era apenas
um convite para conhecer a mulher que existia no seu interior.
Suzan era dançarina
em uma boate de strip-tease.
Arrecadava quantias proporcionais a sua incrível habilidade de sedução,
chegando a faturar mais de três mil dólares por noite. Ela poderia ser uma das
socialites de sua cidade, porém, todo o dinheiro que conseguia era destinado à
uma instituição de caridade fundada por ela mesma. Sua benevolência era algo
questionado pelos homens que pagavam para ter uma dança sensual.
Enquanto seu corpo
era enxaguado, Suzan ouviu os passos silenciosos de John. O homem, antes
impossibilitado de se movimentar, estava ali, parado à porta do banheiro
observando-a tomar banho. Suzan fechou o registro e pediu a toalha para John.
Logo depois, disse com as seguintes palavras:
-Você está bem sujo
rapaz... Venha, tome banho comigo.
John estava coberto
de sangue. Além de suas pernas, seu corpo inteiro passava uma intensa sensação
de insegurança, porém, tal insegurança estava relacionada com o tempo em que
ele poderia se manter vivo. Ele retirou suas roupas ensanguentadas e lançou-as
em um cesto, direcionando-se ao corpo nu de Suzan. Ambos, de início, não tinham
segundas intenções, cada gota de água provocava uma ardência insuportável nas
feridas de John. Suzan ajudava-o a erguer-se todas as vezes que desequilibrava
suas pernas. A mulher ensaboava suas partes íntimas, enquanto ele limpava as
feridas na perna com uma esponja umedecida. Não sentia prazer com o gesto de
Suzan por dois motivos: ambos não estavam interessados em sexo, além disso, a
dor tomava conta do corpo dele de modo a substituir qualquer sensação que possa
provocar felicidade.
Suzan fechou o
registro novamente após John ter sido livrado do sangue que o cobria. Ambos
olharam-se intensamente por vários minutos. Realmente, era impossível não ceder
às tentações. Enquanto o sangue escorria pelo ralo, Suzan era tomada por uma
intensa sensação de prazer e de euforia, os movimentos rápidos e violentos de
John em seu ventre eram as carícias mais sinceras que já recebera.
O canto dos
pássaros à luz da alvorada era um símbolo de que não iriam se separar tão
facilmente.
Após alguns meses,
Suzan e John ainda estavam juntos. A vida noturna de Suzan continuava a
sustentar a instituição de caridade, enquanto John saía todas as noites sem dar
satisfações para sua mulher. Isso poderia causa um conflito entre os dois,
porém, Suzan não se via no direito de cobrar explicações de seu amante. Sempre
terminavam a madrugada embaixo dos lençóis, entre gemidos e orgasmos múltiplos.
Certo dia, antes de
amanhecer, Suzan acordou o adormecido John, sussurrando as seguintes palavras:
-Você sai todas as
noites sem me avisar nada. Por mais que você seja um adulto, fico preocupada
com o que pode vir a acontecer com você. Tenho medo de que possa acontecer algo
parecido com o que aconteceu na primeira vez em que eu te encontrei, John.
Disse Suzan com uma comovente sinceridade.
Ele pensou por
alguns instantes, logo depois, olhou bem no fundo dos olhos dela, de modo a
propor uma promessa.
-Suzan...
-S-sim? Respondeu
espantada com a atitude de John.
-Quero prometer
algo com você.
-Diga... Disse
Suzan após dobrar a sua atenção.
John agarrou sua
mão direita, ainda deitado, e disse:
-Vamos casar, e
após isso, largaremos tudo para vivermos totalmente juntos!
Suzan ficou
perplexa.
-Ca-casar?! Ficou
maluco? Como acha que vou sustentar minha instituição sem a vida que eu levo?
John encostou sua
mão na bochecha direita de Suzan dizendo:
-Tudo o que
precisamos será garantido após o nosso casamento, apenas confie em mim.
Antes de Suzan
contestar novamente, John beijou-a de modo a silenciá-la. A mulher aceitou o
gesto lentamente, aceitando de fato, a promessa feita pelo seu amado.
Os dias demoravam
cada vez mais. Suzan continuava a temer a vida que ela levaria após casar-se
com ele, apesar de querer muito isso. Um dos seus maiores sonhos consistia em
conquistar o marido perfeito para largar a vida de dançarina. John não
trabalhava durante o dia, porém saía misteriosamente de casa todas as noites.
O dia tão esperado
chegou, Suzan estava desistindo da ideia, porém aceitou de bom grado após John
ter preparado o casamento de uma forma desconhecida. A igreja estava toda
arrumada. Havia flores em todos os cantos do templo. Um tapete vermelho cobria
o caminho que seria feito até ele. Apesar de não saber como aquilo era
possível, Suzan continuou a caminhar, acreditando no sonho que acabou virando
realidade.
Suzan não estava
vestida como uma noiva, pelo contrário. Um vestido branco sem cauda cobria o
seu corpo antes virgem. Se vestir como uma noiva era uma hipocrisia para ela,
por isso preferiu estar trajada ao seu gosto. Os convidados iam de parentes que
ainda a consideravam aos funcionários de sua instituição.
A cerimônia foi
magnífica. Ela e John trocaram beijos e champanhe por toda a noite antes de
passar a lua de mel.
“Lua de Mel” que
mais tarde passou a se chamar “Lua de Sangue”. John abriu a porta da casa
enquanto carregava Suzan no colo, deitando-a no sofá. Ela estava adormecida,
porém, acordou após alguns minutos. John estava olhando para ela enquanto
enchia uma taça com vinho tinto.
-Que bom que
acordou querida.
Suzan levantou-se,
de modo a sentar no sofá. Logo depois disse, ainda sonolenta:
-Para quê o vinho?
-Para a nossa lua
de mel, certo?
A mulher negou a
bebida, apesar de John ainda insistir. Ele apanhou uma cadeira de plástico e
sentou diante de Suzan, ainda com as taças de vinho na mão.
-Não é uma questão
de querer beber ou não, é só para discutirmos sobre a nossa promessa. Disse
John seriamente.
Suzan lembrou-se do
que não queria.
-Ainda com isso?
Por que não podemos continuar vivendo da maneira como estávamos?
-Porque somos marido
e mulher agora, não dois animais em busca de sexo.
Suzan
se calou. As palavras de John penetraram o seu coração de forma a culpá-la. Ela
afirmou a promessa no final da conversa.
-Agora
beba, vamos assiná-la com um brinde. Disse John erguendo sua taça.
Suzan
tomou o vinho com os olhos cobertos por lágrimas.
Ambos
adormeceram lentamente, porém John caiu primeiro. Suzan sentiu que havia algo
de diferente na bebida, mas achou que não era algo com o que se preocupar,
apenas tomou e dormiu ao lado de seu marido.
Após
algumas horas, Suzan foi a primeira a acordar. Estava ao lado de John,
esperando que este acordasse junto a ela assim como as outras manhãs. Porém,
isso não aconteceu naquela manhã.
Talvez,
o quarto escuro daquela noite não permitiu que Suzan visse a cena que a
rodeava. Enquanto bebia o vinho, não se deu o trabalho de acender a luz para
arrumar a casa. Havia um painel na parede com fotos desorganizadas.
Aproximou-se do painel e uma imensa dor atingiu o seu coração. Havia pessoas
mortas em todas elas, algumas extremamente deformadas, outras decapitadas,
outras nuas. Suzan rasgou cada uma delas até encontrar um pedaço de papel com
uma frase escrita na caligrafia de John. Enquanto lia, Suzan começou a perder a
respiração e os movimentos do corpo. Da sua boca saíam litros de sangue, seus
olhos acinzentaram-se e logo faleceu.
O
papel tinha a seguinte frase:
“Dedicado à minha querida Suzan, a primeira
mulher que amei, a última mulher que matei.”
Por: Anderson Vieira do
Nascimento
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