quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

O Cidadão (14/01/15)

O Cidadão

       
        Sinceramente, pegar ônibus é um hábito que se eu pudesse evitar, não pensaria duas vezes. Mas infelizmente não posso fazer nada, afinal eu trabalho em uma grade horária de quarenta horas por dia e o salário que ganho ainda não me permite planejar um veículo automotor. Ainda bem que possuo algumas vantagens, como ter a parada de ônibus bem pertinho da minha casa e a frota de coletivos não ser tão descompromissada. De vez em quando eles resolvem entrar em greve, entretanto isso apenas me incomoda quando tenho compromissos realmente importantes, como visitar parentes ou encontrar alguém próximo de mim.
          O negócio é o seguinte, sou apenas um ajudante de pedreiro. Se eu chegasse em uma roda de conversas e se me perguntassem o que faço da vida, eu iria preferir sair da roda a dizer que tenho essa ocupação. Não que eu me sinta indigno, claro que não! Afinal não sou o único que trabalha com isso. Mas se eu pudesse subir na vida de uma maneira mais consistente, eu não pensaria duas vezes. Ah! Existem tantas coisas que eu odeio ser obrigado a fazer. No fim acabo me conformando com a vida que tenho.
             Acordei numa madrugada como outra qualquer e preparei o que eu considero viável para passar o dia. Trabalho braçal, por mais prático que seja, ainda exige uma boa noção do que pode vir a acontecer enquanto manejo aquele cimento. Meu Deus, tanto cimento. E pensar que as cidades inteiras são feitas disso. Me faz sentir orgulhoso quando penso por esse lado. Quem disse que somos "chucros"? Somos protagonistas dos edifícios antes mesmos dos bem apessoados entrarem neles e discutirem os seus interesses.
             Preparei minha mochila com produtos de higiene pessoal e a minha marmita. Até que o pessoal do restaurante capricha, mas o que eu preciso mesmo é comer quando o meio do dia chegar. Bati a porta da minha quitinete com um pouco de força pois estava bastante enferrujada e fechadura caindo aos pedaços. Moro em um alugado, e as pessoas de lá não vão muito com a minha cara por sempre acordá-las às seis da manhã.
             Como sempre amigos, o ônibus da seis e meia estava muito, mas muito lotado. Enquanto me aperto ao máximo para poder me segurar na barra de metal acima da minha cabeça, acabo por observar bastante as pessoas do coletivo. Aparentemente são as mesmas do dia anterior. Se eu olhar por mais de dois segundos para qualquer pessoa, a mesma inicia uma sessão de maus olhados. Eu entendo, afinal é apenas o começo do dia. De um longo, cansativo, repetido e monótono dia. Eu daria meu dinheiro do momento a qualquer um que dissesse o quanto está feliz em encarar o dia com sorriso estampado na cara até colocar a cabeça no travesseiro novamente.
            Mas se tem uma coisa que eu adoro nessas viagens diárias, se não for a única, é a paisagem. Nossa, Brasília é realmente digna de ser considerada patrimônio da humanidade. Sem falar das reflexões que me pego fazendo quando observo os monumentos do centro da cidade. Oscar era um gênio, sem dúvidas. A única coisa que me decepciona no meio dessas reflexões, é lembrar dos escândalos de corrupção que infelizmente acabaram se tornando o slogan da capital para a maioria dos brasileiros. Porém, nessa viagem acabei fixando os olhos em alguém que estava sentado, bem próximo de uma das bacias do Congresso Nacional.
          Realmente, não é algo que se vê todos os dias. Havia um segurança de plantão sentado em uma cadeira localizada bem embaixo da bacia da Câmara dos Deputados, mas mesmo assim ele nem se importou em retirar a pessoa sentada ali. Pelo contrário, era como se a pessoa sentada tivesse autoridade para fazer aquilo. Na verdade era um homem de aparência bastante simples, muito limpo e portando um livro nas mãos. Lendo, é claro. Mas que diabos alguém iria ler um livro, ás seis da manhã, debaixo da Câmara dos Deputados?
             Havia uma senhora bem do meu lado, mas não tão idosa para exigir um acento preferencial. Decidi arriscar e perguntar se ela sabia quem era o sujeito.

             _Com licença senhora, posso te fazer uma pergunta?
             _Sim, claro meu rapaz, pode perguntar.
             _Você sabe quem é aquela pessoa sentada, logo ali na Congresso?

             A senhora olhou para mim um instante, e pelo visto sabia a resposta da minha pergunta. Mas ela me surpreendeu:

             _Ih rapaz, não sei não.

            Ela poderia ter dito que era algum mendigo ou algo do tipo, mas se restringiu a responder que não sabia. De certa forma é uma resposta sensata, defensiva mas sensata. Eu não me importei com o horário, e a rodoviária não estava tão longe, então resolvi descer. Apertei o botão mais próximo e desci quase em frente do Palácio do Planalto.
              Quando me aproximei da rampa de acesso às bacias, um segurança me abordou e disse:

           _O que você quer?
           _Eu só queria saber quem aquele homem que está sentado logo ali na beira do edifício.

          O segurança pensou por um tempo enquanto olhava para mim um tanto surpreso. Logo depois disse:

          _Tá certo, mas deixa eu te revistar, não quero aquele cara morto, entende?

          Ele tava pensando o quê? Que eu iria pegar uma faca e decapitar o sujeito na frente de tanta vigilância? Enfim, subi a rampa após a revista do segurança.
              Quando me aproximei, senti na mesma hora o quão concentrado estava aquele rapaz. Sim, ele era bastante novo. Considerando os meus vinte e sete anos, aquele cara devia ter uns vinte e dois, por aí. Antes de olhar para mim, ele apenas fechou o livro, marcando a página com o apoio do óculos.

               _E aí? De boa?

              Automaticamente respondi:

              _T-tranquilo! 
              _Relaxa cara, senta aqui do meu lado, bora conversar.

              Sentei, fazer o quê? Reparei no livro que ele estava lendo. Estava escrito na capa: "Constituição Federal", com a bandeira do Brasil. Abri ocasionalmente esse livro, mas foi apenas quando eu estava na escola. 
            _Eu estava no sete-meia-quatro ali e percebi que tinha alguém bem concentrado lendo um livro. Mas me surpreendeu ver que alguém estava sentado logo aqui, na frente do Congresso!
               _Hahaha! É como dizem, ousadia e alegria! Hahaha!
               _Hã?
           _Olha só, eu tenho umas ideias meio sem pé nem cabeça, tá ligado? Então se eu soltar alguma doideira de repente... Liga não, falou?
              _Fa-falou... Mas me responde, você é alguém importante, certo?
             _Importante? Que isso... Eu sou apenas mais um cidadão, como você. Me diga, quantos anos você tem?
             _Vinte e sete. Mas se você não é importante, como te deixam ficar aqui em cima? Lendo ainda por cima?
            _Ah, cara! Ler é a coisa mais importante que um cidadão faz durante a vida. Pra você ter uma ideia, a leitura é tão essencial quanto dar bênção ao seu pai ou sua mãe antes de dormir! É algo que Deus gosta, se é que você me entende!
            _Tá certo... Mas por que a constituição?
           _Veja bem. Como cidadão, é um dever meu ler essa parada aqui. Digamos que é a arma eficaz, de certa forma... Mas vou te contar uma coisa... chega mais!
        
            Inclinei os ouvidos desconfiadamente. 

            _Tá vendo esse prédio atrás de você? Então, a galera que está aí parece ter alguma proteção contra essa arma poderosa! É complicado viu...
            _Proteção? Que proteção?
         _A que o povo dá a eles. De certa forma eu tenho essa proteção. Mas digamos que eu seja um soldado que luta sem coleta a prova de balas. Até porque eu mexo com as armas, sabe?

          Concordei, mas quem disse que eu estava entendendo? Aquele cara parecia doido, ou sei lá o quê...

           _Olha cara, tenho que trabalhar. Mas foi um prazer conversar contigo.
           _De boa. Quando você estiver passando por aqui, chega mais pra gente conversar, beleza?
           _Eu vou tentar, até mais.
          _E não se esqueça de ler hein!

        Me dirigi a rodoviária e peguei um coletivo para o Guará. A obra em que estou trabalhando fica localizada lá. Enquanto mexo nos traços de concreto, me arrependo por não ter perguntado o nome daquele rapaz.
           Alguns anos depois, um homem bem jovem assumiu a Câmara dos Deputados. Ele era exatamente igual ao rapaz que me disse aquelas coisas sobre leitura e cidadania. Me dei conta que era o mesmo e o discurso dele ficou para história, como o discurso mais confrontador já proferido em uma posse.
 
              

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