sábado, 25 de julho de 2015

O talento de Augusto (25/07/2015)



Augusto é um garoto do campo, daquele tipo que visualiza o mundo em sua dimensão mais simples, apenas como um lugar para abrigar sua família e o seu pasto. A vida de subsistência é uma realidade que sabemos da sua existência, entretanto a vida urbana consegue tapar os nossos olhos com maestria. Com seus oito anos, Augusto além de correr o dia inteiro atrás das cabeças de gado e ajudar o seu pai com o arado, ainda consegue manter o seu espírito de criança. As suas corridas e o seu jeito simples de ver as coisas intensifica a sua inocência e fragilidade diante do mundo que realmente comanda a vida de todo ser humano.
            A família de Augusto é bem numerosa. Seus pais não podem ser julgados como conservadores, pois a necessidade de seres a mais para a manutenção da vida coletiva é um dos princípios base em qualquer sociedade, inclusive a urbana. Não pense que o campo seja um espaço aberto e rico em ar puro, mas também não é o contrário disso. A vida no campo pode ser interpretada de diversas maneiras, mas apenas uma se encaixa no que chamamos de “vida caipira”. O caipira não é aquele indivíduo que fica sentado na soleira da porta, picando seu fumo e olhando para o tempo enquanto toca sua viola de doze cordas. Basta viajar para o interior do país e pisar em qualquer território no qual há cultura de grãos, alimentos em geral. O caipira é aquele que debaixo do sol dá o máximo da sua existência para um retorno positivo da sociedade.
            Se pensarmos bem, toda pessoa simples pode ser considerada caipira. Aquele que foge do moderno, aquele que se nega a agregar valores a partir de movimentos sociais egocêntricos e pouco saudáveis à relação do homem com o homem. O caipira é aquele que dá o máximo de si, todo o seu esforço, sobre algo que para muitos não passa de perda de tempo. Muitos me corrigiriam e chamariam esse tipo de pessoa de “careta” ou “brega”, eu chamo de “caipira”.
            Augusto tem no seu ser o espírito caipira, não apenas porque a sua descendência vem do campo, da roça, e sim porque a sua maneira de ser deixa claro o porquê de ter vindo ao mundo. Como toda criança, Augusto se sente livre para fazer o que bem entende, e não é diferente com as outras crianças que moram no mesmo município de Minas Gerais. São em terras como essas que vemos uma atemporalidade. Enquanto nas cidades nós costumamos ver as crianças vidradas nas telas de tablets e celulares, nessas terras costumamos ver as crianças brincando umas com as outras, divertindo-se de maneira natural e incrivelmente recíproca, entretanto é incompreensível como vemos esse tipo de relação como um retrocesso.
            A brincadeira preferida das crianças é a biloca, o pique esconde e o golzinho. Mesmo que na maior parte do tempo as crianças ajudam seus pais, ainda sobra tempo para brincarem, ás vezes é possível brincar e fazer um favor para os pais ao mesmo tempo, afinal energia é o que não falta. Alias, por se movimentarem bastante, as crianças adquirem uma imunidade de fazer inveja a qualquer atleta, e não é por meio de esforços exagerados do corpo, e sim por puro prazer de ser feliz.
            Em meio ao sol alaranjado de uma sexta-feira, Augusto calçou suas sandálias e ganhou a rua de barro, colocou a bola debaixo do braço e gritou:

            _Manheeee! Vou sair pra jogar bola! Daqui a pouquinho eu tô de volta! Disse com a porta já entreaberta.
            _Tá bom! Mas toma cuidado com essa rua! Se tu voltar chorando pra casa, tu vai é apanhar, tá me ouvindo! Disse a mãe de Augusto.
            _Tá bom mainha... Augusto saiu cabisbaixo após o aviso da mãe.

            Júnior estava sentado no sofá de lã e almofada de cetim, bem gastado e com um pouco de poeira. Enquanto olhava atento para a televisão para não perder as reviravoltas de “A Usurpadora”, sua mão lentamente carregava o biscoito de maisena molhado de café a sua boca. Enquanto mastigava e acompanhava com indignação as travessuras de Paola, ouvia-se uma voz aguda acompanhada de batidas na madeira:

            _Ô JÚNIU! BORA JOGÁ BOLA! Esse era o grito.
            _PERAÍ, TÁ ACABANDO A NOVELA! Disse Júnior, sem mover um dedo antes que os créditos finais começassem.

            Júnior fechou a porta de acompanhou Augusto até a casa dos seus outros amigos, que não cabe nomear nesta narrativa. É interessante como as crianças se comportam quando se dispõem a brincar. Podemos interpretar esse comportamento como uma tentativa eficaz de expressar o seu interior, o futebol ou qualquer outra brincadeira de gosto popular são apenas mediadores nessa conversa que as crianças têm consigo mesmas. Augusto, rápido como sempre para montar as “traves do gol”, que eram apenas quatro pedras, duas em cada extremidade do “campo de jogo”, que era de no máximo 20 metros. Dessa vez era possível formar times com três pessoas.
            Entre as várias formas que conhecemos para tirar time, uma das mais usadas é indicar os mais velhos ou os mais habilidosos para escolherem seus jogadores. Augusto com seus oito anos era o mais novo, e Júnior era o mais velho, com dez anos, os quatro restantes estavam com nove. Júnior além de ser o mais velho, ainda era muito habilidoso com a bola, entretanto havia alguém entre aqueles meninos que ultrapassava as expectativas de qualquer olheiro que parasse por aquele município para caçar talentos. Com oito anos, Augusto tratava a bola como sua companheira de vida, não apenas artigo esportivo. Uma bola muito simples, com todos aqueles hexágonos, mas sem alguma pintura, completamente branca e incrivelmente limpa. Era como se Augusto limpasse a bola apenas para sujá-la o máximo que conseguisse enquanto jogava. Um verdadeiro talento escondido no arado destinado à Ceasa.
            O jogo começou, a disputa de ímpar e par decidiu quem começaria com a bola, o trio de Júnior. O passe rápido e preciso para trás e logo o seu corpo estava bem perto das traves de Augusto. Já deu pra perceber que Júnior se sentia o atacante. A bola começa a formar sua trajetória em zigue-zague enquanto os passes são trocados entre os dois companheiros de Júnior, mas o logo o seu movimento é interrompido pelos pés do amigo de Augusto, acabando com a tabela de passes. Com muita habilidade o companheiro de Júnior consegue se livrar do seu marcador ao executar uma belíssima caneta e assim que alcançou a bola do outro lado, o passe certeiro chegou aos pés de Júnior. Augusto e Júnior tinham praticamente a mesma altura, mas anatomicamente falando, Júnior era mais forte e aliado às pernas rápidas tornava-se o jogador ideal para finalizar a jogada. A bola foi ao alto. A tentativa habilidosa de fazer o lençol em Augusto parecia ter dado certo. Numa queda diagonal, a bola conseguiu alcançar algum solo. Poderia ser o barro do campo improvisado, porém esse solo era feito de sola de pé. O chute potente do menino Augusto deu fim à esperança de Júnior em completar o lençol. Numa trajetória linear e impecável, a bola rasteiramente passa pelo espaço demarcado pelas duas pedras do outro lado do campo. Gol do trio Augusto.

            _O JOGO SÓ TÁ COMEÇANDO! Gritou Augusto, substituindo o grito de gol.

            A tarde estava chegando ao fim e as crianças numa obediência exemplar voltaram às suas casas para jantar. O resultado de jogo? Felicidade, prazer em estarem vivos e cobertos pela paz da vida na roça. Os pratos de porcelana começaram a tilintar na cozinha da dona Augusta. O cheirinho inconfundível do arroz branco, do feijão tropeiro, e da mandioca amassada tomou conta da casinha de tijolos. A iluminação da casa se dava por meio de lâmpadas incandescentes, daquelas da cabeça redonda. Uma televisão de tubo com apenas cinco canais funcionando (a TV Brasil não funciona), ficava distante da mesa de jantar, justamente para consagrar o momento mais puro que uma família pode ter: o jantar em família.

            _Como foi o jogo meu filho? Fez muitos gols pra mamãe? Perguntou a dona Augusta enquanto derramava a concha de feijão tropeiro no prato do filho.
            _Fiz mamãe, e pro pai também! Dei muitos olézinhos também! Disse o menino preparando a colher para enterrá-la no prato.
            _Espera menino! Tem que agradecer primeiro. Disse Augusta com tom de censura.
            _Mas mãe eu to varado de fome! Disse Augusto sem medo do perigo.
           
            A voz forte, mas ao mesmo tempo bastante cansada do dia intenso de trabalho ecoou pela casa com extrema autoridade e com uma inexplicável calma:

            _Obedece sua mãe, Augusto.

         O Seu Domingos era o pai de Augusto. Em nosso dia-a-dia é bastante comum encontrar pessoas que tentam com todas as forças taxarem a personalidade do adulto. O que encontramos nessas tentativas são afirmativas como: “O experiente”, “O inteligente”, “O que pode fazer o que as crianças não podem fazer”, “O maduro”, “O responsável”. Se o Seu Domingos fosse preencher um formulário que lhe perguntasse sobre essas características, ele não conseguiria responder nenhuma questão. Não porque ele não seja nada disso, mas sim porque ele não sabe ler.
         Vivemos em uma realidade que difere bastante do próximo, e essa diferença se torna um universo completamente diferente das nossas prerrogativas e julgamentos científicos. O Seu Domingos é um exemplo de ser humano que não está relacionado como nada da vida burocrática urbana, exceto pelos seus dados de nascimento, feitos no cartório da cidade mais próxima. Não é preciso ler essa narrativa para compreender que o nosso mundo não se limita à evolução da ciência, da tecnologia, da informação.
         A oração curta e decorada da mãe deu início ao jantar. Silencioso e calmo, concentrado apenas nos nutrientes que cada grão de arroz e feijão pudesse proporcionar a Augusto, seus cinco irmãos, e seus pais.

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