terça-feira, 4 de agosto de 2015

Carne para o abate (04/08/2015)




               
             Respingos em meio a lama tornam-se cada vez mais evidentes após alguns minutos de chuva intensa. Se São Pedro é quem fica responsável por controlar as atividades pluviais, dessa vez alguma coisa deve tê-lo irritado de verdade. Bem, perdoem-me se estou sendo específico demais ou até mesmo displicente em relação à opção religiosa do leitor, entretanto não sou o único nesse país que utiliza da autoridade de nossos símbolos religiosos para montar analogias. Mas acreditem em mim: Era realmente uma chuva severa e atípica.
          O movimento frenético dos seres ali presentes configura o cenário caótico e completamente desordenado devido à lama formada, além de chocarem entre si ainda tinham que lidar com a sujeira que parecia ser móvel das pernas ao busto. Alguns correram para os cantos do espaço disponível, outros preferiram ficar para enfrentar a chuva sem ao menos saírem do lugar que estavam antes da tempestade começar. Ninguém pede por uma chuva sem estar devidamente prevenido, nem mesmo aqueles que enfrentam a seca durante algumas épocas do ano.
            A chuva deu uma trégua. O movimento intenso também cessou, entretanto os problemas verdadeiros começaram. Sempre que uma forte chuva surpreende uma população indevidamente protegida, é comum que as tragédias apareçam nos noticiários, principalmente se tais tragédias resultarem em mortes, de preferência muitas mortes. Dependendo do materialismo cultivado pela vítima, seria melhor ter morrido do que ter os bens materiais levados pela incontestável natureza. Ainda bem que boa parte das pessoas que foram vítimas dessas chuvas preferiu dar mais valor às vidas dependentes do que os objetos perdidos.
              Mas nesse caso, ninguém morreu, ninguém ficou ferido, ninguém perdeu nada. Restou apenas lama, sujeira e esterco. O criador, devidamente protegido da tempestade, acabara de saborear a sua pinga enquanto a chuva castigava o gado. Como de costume, foi verificar como os animais estavam após tomarem um “banho”. Nada demais, sujos ou não o que importa é a saúde. Voltou ao casebre para tomar mais um pouco da sua “pitchulinha” de cachaça. Nem sempre o criador poderia sair do casebre apenas para vigiar o gado. O motivo poderia ser a preguiça, mas geralmente ele estava bêbado demais para verificar alguma irregularidade com os animais.
            Vendo tamanho impasse, o fazendeiro decidiu chamar o criador para uma conversa séria:

            _Genoíno, eu vejo que nem sempre o senhor sai do casebre para vigiar o gado. Pode me explicar o que acontece nesses momentos?

            O criador estava nitidamente embriagado.

            _Óia meu patrão, o sinhô sabe muito bem que tomo minhas cachacinhas durante o sirviço, ic! Me disculpa se eu num sô adequado para criar os gado, ic!

            O fazendeiro sabia do passado daquele homem, por isso tentou manter a paciência com o seu Genoíno e lhe disse:

            _Olha, vai pra sua casa e pede pro seu filho tomar conta do senhor. Você já trabalhou demais por hoje. Conto contigo quando estiver melhor!

            Toda pessoa que convive ou conviveu com pessoas acostumadas a beber, sabe que não importa o quanto a pessoa esteja bêbada, ela nunca errará o caminho para casa, a não ser que o estado de embriaguez seja tão avançado a ponto de levar a pessoa ao desmaio. Porém, sempre que um familiar acaba descobrindo o estado da pessoa, sempre esse familiar leva essa pessoa para casa, normalmente sob muitas broncas.
            O filho do criador logo chegou à casa do fazendeiro para buscar o pai. Depois de muito esforço para levantar o peso do corpo e apoiá-lo nos seus ombros, o primogênito fez seu caminho bastante decepcionado, mais uma vez.
            Enquanto chovia, o criador bebia, mas seu filho sempre estava lá por precaução, pois sabia muito bem que o pai beberia exageradamente. Aos dezesseis anos, o jovem pleiteia uma vaga na universidade do seu estado, por isso enquanto vigia o pai ele aproveita para estudar na medida do possível. Mesmo a criação de gado sendo a função do pai, o garoto sempre admirou a maneira desses animais se comportarem. Com o tempo ele começou a fazer perguntas para o pai sobre a criação e logo despertou o interesse em conhecer mais sobre os animais, não apenas o gado.
            Tudo seria perfeito se o destino se comportasse da maneira que desejamos, mas esse mesmo destino parece criar mãos e nos dizer: “Se liga, mané!”, em seguida nos dá um tapa. Acontece que o destino do jovem não lhe deu apenas um tapa, e sim um acidente grave numa interestadual. Não sei se posso incluir a palavra “felizmente” pelo fato de não ter sido um acidente que lhe envolvera, mas o fato de ter sido com uma pessoa muito próxima é proporcional a uma mutilação de qualquer membro abaixo do pescoço. Se não fosse a negligência de um caminhoneiro sonolento numa via de mão dupla, hoje ele poderia dividir o jantar com seu pai, sua mãe e seu irmão mais novo. Ele apenas se ocupa em dar banho no pai e fazer a comida do seu jeito, sem as dicas da mãe, sem as brincadeiras do caçula.
            Sempre que vejo um homem se embriagando até o limite de sua consciência, tento me convencer de que existe algum motivo para isso. Assim como Genoíno, homem algum que ama fervorosamente sua companheira chegaria a imaginar que um dia a perderia. A notícia chegou tão rápido quanto a vontade de mergulhar em meio à garapa destilada.
            O dia após a chuva não resistiu às ameaças do céu nublado e cedeu novamente aos pingos violentos e densos. No casebre estavam o Genoíno, seu filho e os livros e cadernos em cima da mesa de madeira improvisada. Sentado em sua cadeira de balanço, o viúvo segurava de olhos fechados a garrafa quase vazia. Na cadeira estofada e emprestada pela governanta da casa, estavam apenas o caderno aberto e uma caneta marcando a página.
            Uma lona azul e gigantesca o suficiente para cobrir todos os animais começou a abrir e espalhar-se pelo espaço do cercado. As mãos cheias de calos nos dedos, aparentemente pela escrita excessiva, posicionavam com rapidez acima das cabeças dos gados. Não aceitava que aqueles animais seriam mandados para o abate em poucos meses, então o máximo que poderia fazer era cuidar deles com todo cuidado. O cobertor de lã estava sobre o homem adormecido, e assim que cobriu o pai do frio da chuva, deu-lhe um beijo na testa.
            Será que o gado era o único ser presente destinado ao abate? Acho que não. O destino constantemente tenta nos abater de alguma forma. No fim, todos nós somos carne destinada ao abate, mas sempre existirá aquela pessoa que se recusa a ver quem ama ser abatido.

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