O movimento frenético dos seres ali
presentes configura o cenário caótico e completamente desordenado devido à lama
formada, além de chocarem entre si ainda tinham que lidar com a sujeira que parecia
ser móvel das pernas ao busto. Alguns correram para os cantos do espaço
disponível, outros preferiram ficar para enfrentar a chuva sem ao menos saírem
do lugar que estavam antes da tempestade começar. Ninguém pede por uma chuva
sem estar devidamente prevenido, nem mesmo aqueles que enfrentam a seca durante
algumas épocas do ano.
A chuva deu uma trégua. O movimento
intenso também cessou, entretanto os problemas verdadeiros começaram. Sempre que
uma forte chuva surpreende uma população indevidamente protegida, é comum que
as tragédias apareçam nos noticiários, principalmente se tais tragédias resultarem
em mortes, de preferência muitas mortes. Dependendo do materialismo cultivado
pela vítima, seria melhor ter morrido do que ter os bens materiais levados pela
incontestável natureza. Ainda bem que boa parte das pessoas que foram vítimas
dessas chuvas preferiu dar mais valor às vidas dependentes do que os objetos
perdidos.
Mas nesse caso, ninguém morreu,
ninguém ficou ferido, ninguém perdeu nada. Restou apenas lama, sujeira e
esterco. O criador, devidamente protegido da tempestade, acabara de saborear a
sua pinga enquanto a chuva castigava o gado. Como de costume, foi verificar
como os animais estavam após tomarem um “banho”. Nada demais, sujos ou não o
que importa é a saúde. Voltou ao casebre para tomar mais um pouco da sua “pitchulinha”
de cachaça. Nem sempre o criador poderia sair do casebre apenas para vigiar o
gado. O motivo poderia ser a preguiça, mas geralmente ele estava bêbado demais
para verificar alguma irregularidade com os animais.
Vendo tamanho impasse, o fazendeiro
decidiu chamar o criador para uma conversa séria:
_Genoíno, eu vejo que nem sempre o
senhor sai do casebre para vigiar o gado. Pode me explicar o que acontece
nesses momentos?
O criador estava nitidamente
embriagado.
_Óia meu patrão, o sinhô sabe muito
bem que tomo minhas cachacinhas durante o sirviço, ic! Me disculpa se eu num sô
adequado para criar os gado, ic!
O fazendeiro sabia do passado
daquele homem, por isso tentou manter a paciência com o seu Genoíno e lhe
disse:
_Olha, vai pra sua casa e pede pro
seu filho tomar conta do senhor. Você já trabalhou demais por hoje. Conto contigo
quando estiver melhor!
Toda pessoa que convive ou conviveu
com pessoas acostumadas a beber, sabe que não importa o quanto a pessoa esteja
bêbada, ela nunca errará o caminho para casa, a não ser que o estado de
embriaguez seja tão avançado a ponto de levar a pessoa ao desmaio. Porém,
sempre que um familiar acaba descobrindo o estado da pessoa, sempre esse
familiar leva essa pessoa para casa, normalmente sob muitas broncas.
O filho do criador logo chegou à casa
do fazendeiro para buscar o pai. Depois de muito esforço para levantar o peso
do corpo e apoiá-lo nos seus ombros, o primogênito fez seu caminho bastante
decepcionado, mais uma vez.
Enquanto chovia, o criador bebia,
mas seu filho sempre estava lá por precaução, pois sabia muito bem que o pai
beberia exageradamente. Aos dezesseis anos, o jovem pleiteia uma vaga na
universidade do seu estado, por isso enquanto vigia o pai ele aproveita para
estudar na medida do possível. Mesmo a criação de gado sendo a função do pai, o
garoto sempre admirou a maneira desses animais se comportarem. Com o tempo ele
começou a fazer perguntas para o pai sobre a criação e logo despertou o
interesse em conhecer mais sobre os animais, não apenas o gado.
Tudo seria perfeito se o destino se
comportasse da maneira que desejamos, mas esse mesmo destino parece criar mãos
e nos dizer: “Se liga, mané!”, em seguida nos dá um tapa. Acontece que o
destino do jovem não lhe deu apenas um tapa, e sim um acidente grave numa
interestadual. Não sei se posso incluir a palavra “felizmente” pelo fato de não
ter sido um acidente que lhe envolvera, mas o fato de ter sido com uma pessoa
muito próxima é proporcional a uma mutilação de qualquer membro abaixo do
pescoço. Se não fosse a negligência de um caminhoneiro sonolento numa via de
mão dupla, hoje ele poderia dividir o jantar com seu pai, sua mãe e seu irmão
mais novo. Ele apenas se ocupa em dar banho no pai e fazer a comida do seu
jeito, sem as dicas da mãe, sem as brincadeiras do caçula.
Sempre que vejo um homem se
embriagando até o limite de sua consciência, tento me convencer de que existe
algum motivo para isso. Assim como Genoíno, homem algum que ama fervorosamente
sua companheira chegaria a imaginar que um dia a perderia. A notícia chegou tão
rápido quanto a vontade de mergulhar em meio à garapa destilada.
O dia após a chuva não resistiu às
ameaças do céu nublado e cedeu novamente aos pingos violentos e densos. No casebre
estavam o Genoíno, seu filho e os livros e cadernos em cima da mesa de madeira
improvisada. Sentado em sua cadeira de balanço, o viúvo segurava de olhos
fechados a garrafa quase vazia. Na cadeira estofada e emprestada pela
governanta da casa, estavam apenas o caderno aberto e uma caneta marcando a
página.
Uma lona azul e gigantesca o
suficiente para cobrir todos os animais começou a abrir e espalhar-se pelo
espaço do cercado. As mãos cheias de calos nos dedos, aparentemente pela
escrita excessiva, posicionavam com rapidez acima das cabeças dos gados. Não aceitava
que aqueles animais seriam mandados para o abate em poucos meses, então o
máximo que poderia fazer era cuidar deles com todo cuidado. O cobertor de lã
estava sobre o homem adormecido, e assim que cobriu o pai do frio da chuva,
deu-lhe um beijo na testa.
Será que o gado era o único ser
presente destinado ao abate? Acho que não. O destino constantemente tenta nos
abater de alguma forma. No fim, todos nós somos carne destinada ao abate, mas
sempre existirá aquela pessoa que se recusa a ver quem ama ser abatido.
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