sábado, 12 de setembro de 2015

Rainha Solitária (12/09/2015)



Sob a aurora de outra segunda-feira, o telefone vibra e apenas vibra. Essas tecnologias permitem, de alguma forma, a não interrupção do sono, o que é estranho, pois o jeito mais comum de despertar seria alguém cutucando o ombro do adormecido ou adormecida. Quero dizer, seria comum num ambiente compartilhado por indivíduos com o mesmo interesse. E que interesse é esse? Batalhar para viver no mundo é claro.
Acontece que (desculpe, mas utilizarei esse clichê) nossas vidas são feitas de escolhas. A existência da família é resultado da decisão mais simples que o ser situado num território tomou durante a sua vida. O propósito de ter filhos, obter um lar para morar, uma esposa ou marido com quem os bens obtidos serão divididos e finalmente deixar um legado após os sentidos desligarem para a eternidade. Mas apenas o fato de ser uma decisão básica não é suficiente para impedir os indivíduos de trilharem outros caminhos. Apenas o fato da família ser uma instituição social não impede que outras gerações sejam detidas de habitarem esse planeta.
Imagine se tudo fosse comandado pela existência única da família! Será que existiriam leis pelo menos um pouco parecidas com as que nós acabamos submetidos? Essa é uma questão que, sob os olhos de qualquer sociólogo, além de ser ingênua seria ridícula e impensada. Mas como ela seria vista sob os olhos de um cidadão comum, ou melhor, sob os olhos de uma pessoa completamente oposta aos parâmetros do pensamento crítico? Provavelmente ela seria vista como uma questão de prova de geografia... E por quê?
A família é muito valorizada, sem dúvida, por aqueles que se encarregam de sustentar parcialmente ou por completo as suas. Mas antes de chegar à ferramenta utilizada para essa subsistência, essa mesma ferramenta passa por uma série de processos, alguns mais lentos, outros mais rápidos. Então, se a família é um dos últimos processos pelos quais essa ferramenta transformadora passa, quem diabos está no topo?
A partir dessa indagação somos transportados ao telefone que vibrou numa aurora de outra segunda-feira. Os olhos ainda não se abriram por completo, sinal do sono recém-interrompido. Vagarosamente suas pernas saem do algodão do edredom e vão de encontro para as sandálias aos pés da cama. A mão direita coça o couro cabeludo, enquanto a mão esquerda atende ao telefone, sendo necessários apenas alguns deslizes do dedo polegar e um toque bem de leve na tela “LCD”. Antes de falar, um bocejo fora largado bem distante do captador de som do telefone, logo surgiu um “alô” do outro lado da linha. A voz dizia:

“Estamos esperando no salão principal”.

Como resposta, nada de palavras, apenas um “anham”. A voz prosseguiu:
“Por favor Sr**********, não se apresse. Temos tempo suficiente para ********** cuidar das suas necessidades e tomar o seu café da manhã...”

Como resposta, além de um “anham” veio um “tudo bem”. E a ligação terminou.
Com os braços apoiados no colchão, o corpo já estava mais ou menos erguido. Entre passos lentos e rápidos e uma respiração bem inaudível, a fisionomia sonolenta tomou o seu caminho para o banheiro pessoal.
Os dedos, indicador e polegar, tiveram a função de girar a válvula da torneira da pia de porcelana e logo a pressão do sistema hidráulico liberou a corrente mínima de água. A mão lavando a outra, logo assume a forma de concha e num movimento brusco, mas não tão violento, a água retida agora escorria pelo semblante neutro, passivo e preocupado. A presença do espelho dava início ao primeiro embate cara a cara do dia: a existência que vê e a existência que é observada por todos.
As maçãs volumosas do rosto, os olhos castanhos e acima das linhas de expressão. Essas últimas, de tanto serem usadas, traziam consigo as marcas de muitos anos de vida. Nem tantos, mas muitos. O cabelo curto, mas não tão curto, tinha a função de contrastar com os elementos intrínsecos aos homens e mulheres experientes, tendendo ao ruivo, porém castanho. A boca sem batom, os olhos sem o delineador, o rosto sem a maquiagem usual. Para ver-se como veio ao mundo, não é necessário se despir, basta olhar bem no fundo dos próprios olhos, pois neles estão contidos todos os segundos, minutos, horas, dias, anos, desde o dia em que o corpo deixou o outro corpo.
Cansou de encarar. Despiu-se e tomou um banho quente. Após secar-se com uma das toalhas do nicho, depositou a mesma no cesto de roupas sujas. Da peça íntima ao terno que usualmente faz parte do seu figurino. Agora o batom, o delineador, o pó de arroz, enfim, a maquiagem estava no devido lugar. Era hora de se dirigir ao tal salão. Após bater a porta da suíte, bem de leve na verdade, caminhou com passos rápidos para chegar ao local sem mais delongas. Enquanto caminhava, a paisagem que se configurava do outro lado das paredes translúcidas não economizava a sua beleza sob o sol da manhã. Ah! Como é lindo esse avião... Ou será uma borboleta?
O salão principal era apenas um ponto de transição nesse passeio que estava para iniciar o seu dia e os seus compromissos. Ao atravessá-lo, um carro preto, teto fechado, já estava com a porta dos passageiros aberta. O ronco do motor seguiu após o baque da trava da porta. Tudo conforme a segurança esperada, hora de partir.
O destino não era tão distante, entretanto o que aumentaria o tempo de viagem, mais uma vez, seria a segurança necessária, extraordinariamente necessária. A sincronia serena dos braços e pernas do motorista atendia às exigências mecânicas do carro. A alta qualidade do veículo não emitia nenhum ruído senão o atrito das rodas com o asfalto. O carro então parou.
Alguém indicado unicamente para abrir a porta do passageiro apenas puxou a trava e lá permaneceu, imóvel, o olhar fixo no horizonte banal. A barriga levemente flexionou, respeitando os limites da coluna vertebral, deixando que a cabeça se elevasse acima do teto do veículo. A última palavra aplicável a essa cabeça seria “vulnerável”. O conceito de proteção que temos não é suficiente para explicar esse momento tão simples que consiste apenas em sair de um carro.
Nenhuma palavra dita, mas para quê? Tudo já estava programado, de acordo com uma enumeração de ações cuidadosamente elaboradas para que tudo fosse perfeito, sem falhas. O plano era muito simples: sair de um carro, ir para outro, chegar ao destino final, descer desse outro carro e permanecer lá até o evento terminar.
Sentou-se no banco de couro, impecavelmente limpo, assim como toda lataria do veículo. Curioso para saber que carro é? Um Rolls Royce. Chique, não? Entretanto, além do motorista, havia outra companhia: um homem de cabelos grisalhos, nem tão magro, nem tão gordo. Seria o Rei? Não sei, infelizmente.
Não era necessário que o carro fosse dirigido com pressa, afinal nem era essa a intenção. Enquanto as rodas giravam, os braços erguidos balançavam de um lado para outro, como um aceno. Normalmente um aceno gera aplausos, gritos de exaltação e mais aplausos. Coisas assim acontecem com artistas famosos, cantores famosos, músicos famosos, pessoas que a mídia se encarrega de elevar a carreira das mesmas.
Sob o tremular da bandeira, gritos de ódio, gritos de apoio. Aplausos de motivação, insultos exageradamente destrutivos. Os braços que acenavam não queriam, em hipótese alguma, fazer parte daquela peça de teatro que antes mesmo de começar o primeiro ato estava fadada ao fracasso. O carro para, os braços se abaixam. Os gritos, as vaias, os aplausos, os insultos, todos os elementos da cena permanecem. A personagem principal se pergunta: “Por que?”.
O discurso vazio, redundante, cansativo, mastigado várias e várias vezes. O resultado dele? Mais vaias, mais insultos. Aqueles que aplaudiram entraram em silêncio. Restou voltar aos seus companheiros, ou melhor, ao seu companheiro de cabelo grisalho, nem gordo, nem magro. Não adiantou.
Seu olhar vazio, desmotivado, abatido e, sobretudo cansado. Mas como cansado? O dia só começou... Que nada! Ainda restam três anos e mesmo assim não tem a certeza de que vai deixar o trono da linhagem atual. O cansaço nos olhos é traduzido no corpo, o qual encontra “alívio” ao sentar no banco de madeira. Nada fazia sentido. Nem família, nem Estado, nem seus ditos companheiros. Está sozinha, uma Rainha Solitária.

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