As luzes são desligadas cômodo por cômodo até
o último interruptor, bem próximo ao fogão a gás. O baque sutil da porta
encerra mais um dia como outro qualquer. A noite corre como um menino e seu cão
em dias de verão e banhos de mangueira. Enfim, nada demais. A luz do corredor
acende assim que detecta os movimentos que as paredes e o chão jamais fariam. As
estocadas do salto sobre o piso de madeira direcionam o som até o elevador do
edifício.
Os portais de aço oferecem a magia do
transporte vertical e em poucos segundos encontra terra firme, tempo suficiente
para esticar o cabelo, prendê-lo com as presilhas, retocar o batom e conferir o
resultado no espelho da caixa mágica. Em uma câmera qualquer há alguém
pensando: “Que mulher!”. Sem pressa e sem demora, seu vestido azul de alças nos
ombros e barra nas coxas dava suporte para a pele mulata, vigorosa, preservada,
jovem. O cabelo tingido levemente com o tom avermelhado da indústria, mesclado
perfeitamente ao castanho natural. Quente para se tornar liso. Ela trocou
algumas palavras com o porteiro, apenas uma relação entre consumidor e
prestador de serviços.
As escadas para o subterrâneo produziam o eco
característico de um lugar vazio, preenchido por carros de todos os tipos. O som
das escadas em uso logo cessou e deu lugar aos passos do salto alto. A trava da
porta de um carro qualquer acabara de ser destravada sem agressão alguma,
apenas quando voltou a ser trancada para dar início ao ronco do motor. Os pneus
não cantaram, apenas seguiram rumo à saída para o mundo superior. A janela se
abre e vemos uma bela mulher dirigindo o seu carro em meio a tantos outros. Apenas
uma mulher, nada demais.
Alguns quilômetros rodados e a moça parou em
um posto de abastecimento. Deu de beber a máquina e deu de beber a si com um
refrigerante e ainda satisfez a fome com um sanduíche de pão integral. A viagem
é longa, há uma estrada pela frente e um desejo para saciar.
Girando o globo ao contrário somos
transportados da interestadual para um estabelecimento num centro comercial,
bem acessível por sinal. Um carro de porte médio estacionou bem à frente desse
estabelecimento e após a porta ter sido aberta, um homem com um boné que trazia
a inscrição “DPC” desceu do carro juntamente com outro homem com o mesmo boné. O
porta-malas é aberto e há um rapaz todo comprimido, dividindo espaço com outro
rapaz igualmente comprimido. Os homens pegaram cada um dos rapazes pelos braços
e os levaram até o estabelecimento que estampava em sua fachada: “Delegacia de
Polícia Civil”.
Levados com certa indiferença para dentro do
lugar, os rapazes receberam algemas para que não pudessem reagir de forma mais
livre. Era aquela mesma história: “Você tem o direito de permanecer calado”. O que
eles teriam feito para tal castigo? Era o que o delegado queria saber. A conversa
seguiu assim:
_O que tu aprontou dessa vez, moleque? Já vi
a tua cara outras vezes... disse o delegado.
_Fiz nada não, senhor. Respondeu um dos
rapazes.
O delegado fitou ambos por alguns instantes,
mas logo desviou o olhar para um objeto em cima do armário de arquivos.
Continuou a conversa:
_E o que isso está fazendo aqui? Perguntou o
delegado.
_Não fui eu que roubei, senhor. Respondeu o
outro rapaz.
O delegado, por mais que estivesse cansado de
mais um dia estressante, manteve a calma e apenas respondeu, finalizando a
conversa:
_Nós vamos fazer um seguinte: Vocês vão ligar
para os pais de vocês e conversamos todos juntos. Beleza?
Os garotos não responderam.
Pelas suas expressões, tal momento de
interrogações e solicitação de pais à delegacia parecia ser bem corriqueiro
para eles. Uma hora depois, aproximadamente, as mães dos rapazes chegaram à
delegacia, assinaram alguns papéis e, inconformadas com tal situação que
parecia ser frequente, partiram. O delegado continuou suas tarefas em seu
escritório, mas dessa vez ele apanhou o objeto em cima do armário, levou até a
seção de apreendidos e solicitou que os agentes procurasse o dono do objeto o
mais rápido possível.
A equipe eficiente logo encontrou alguns
pertencer dentro do objeto que poderiam localizar o proprietário. Um pedaço de
papel com alguns dígitos escritos a mão era a principal pista para resolver
essa etapa da investigação. A ligação do telefone fixo para telefone móvel
parecia não ter resultados, pois apenas aquele ruído pausado e lento respondia
às chamadas da polícia. Depois de algumas tentativas frustradas, os policiais
resolveram rastrear os dados daquele número e, a partir desses dados, encontrar
informações sobre aquele ou aquela que teve os seus pertences retirados.
É incrível como nossas vidas podem ser
reduzidas a dados quando nos integramos à tecnologia. De certo modo, toda forma
de tecnologia propõe auxiliar as nossas vidas, porém essa mesma facilidade nos
leva ao profundo existencialismo: “Conecto, logo existo!”. Não foi nada difícil
localizar o dono daquele número a partir das informações fornecidas pela
operadora de celular. Informações como “Cadastro de Pessoa Física” são exemplos
da condensação de nossa existência para a adequação à vida burocrática,
sistemática.
Nome: Henrique Silva dos Santos
Data de Nascimento: 18/10/1977
Endereço: Um edifício qualquer
Profissão: Psicólogo
Seria antiético e bastante atípico deixar um
objeto alheio na delegacia sem ao menos identificar o dono do mesmo, mas que
fazer se o dono do objeto não atende às ligações? Será que ele não atende por
desconfiança? Ou será que algo tão inesperado ocorreu que nem mesmo as ligações
da polícia ele pode atender? Qualquer suspeita poderia ser levantada, afinal
quando se tem algo furtado ou roubado, é claro que aquele que o perdeu deseja
resgatar e sentir-se seguro ao tê-lo em mãos novamente. Bem, a polícia está a
serviço do povo, ou seja, mesmo que o proprietário de um objeto furtado não
atenda às ligações de uma delegacia, o dever de devolver ao respectivo dono
ainda não é descartado. Então, se Maomé não vai à montanha, a montanha vai a
Maomé.
Dois agentes plantonistas entraram numa
viatura e após o acionamento da chave partiram ao endereço do lesado. A distância
da delegacia para o edifício qualquer não era tão extensa, ainda mais quando
percorrida de carro. Entre lojas, condomínios, residências quitadas e aluguéis,
a viatura da polícia refletia a luz dos postes em sua lataria. Pelo metal da
porta, viam-se pessoas, algumas com passagens, outras não, enfim, uma cidade. Ao
chegarem ao edifício, logo o porteiro providenciou o atendimento aos policiais,
ao mesmo tempo em que se sentia confuso, afinal, para quê dois policiais
estariam naquele prédio? Era raro que alguma autoridade viesse em seu tempo de
serviço para averiguar as dependências. Um dos agentes perguntou ao porteiro:
_O senhor poderia localizar o apartamento do
senhor Henrique?
O porteiro vasculhou a memória para
identificar de qual Henrique aquele homem estava falando. Após alguns segundos
disfarçando em frente à tela do computador, o porteiro arriscou um palpite:
_O Henrique psicólogo?
O policial confirmou com um aceno de cabeça. Rapidamente
o porteiro informou a numeração do apartamento e com igual rapidez os agentes
se dirigiram ao elevador. Na mente do porteiro estava o seguinte pensamento: “Será
que vão prender o Henrique?”.
A caixa de metal deixou os policiais no
décimo terceiro andar e logo fechou os portais. Com serenidade, paciência,
farda, pistola e um saco plástico abrigando o objeto a ser devolvido, os
agentes se dirigiram à porta com a numeração informada pelo porteiro. Uma olhadela
pelo olho mágico não foi o suficiente para detectar alguém dentro das
dependências. Partiram para o “toc-toc”. Apenas isso e nenhuma resposta. Partiram
para o vocativo:
_Senhor Henrique! Polícia Civil!
Nada. Mais uma vez:
_Senhor Henrique! Polícia Civil!
Nada. Frustração.
O policial não tinha mandado judicial algum
que o permitia entrar no apartamento como o uso da agressão ou da força. Então ele
decide quebrar o protocolo de maneira muito simples: Gira a maçaneta. Para a
sua surpresa e constrangimento, a porta estava encostada desde o momento em que
olhou pelo buraco de vidro.
Vazio, apenas um apartamento.
Os policiais vasculharam o recinto sem
provocar desordens, apenas com o intuito de encontrarem alguém em sono profundo
e acordá-lo para devolver o objeto perdido. A porta da cozinha, o cômodo
estranhamente isolado do apartamento, estava fechada. A esperança era a
cozinha, santuário da alimentação. Ele girou a maçaneta lentamente, por algum
motivo completamente desvinculado com o instinto policial, e sim o instinto
humano. As luzes acendem. O chão se tornou vermelho. O homem não mais vive.
Vazio. Um corpo. Um apartamento de um
edifício qualquer. Um celular com várias ligações não atendidas. Uma bolsa de
mulher no saco plástico. O número de celular de um homem morto. Uma mulher em
um posto de abastecimento, saboreando seu refrigerante e sanduíche integral
enquanto anota o número do celular de um homem encantado pela sua beleza.
Sugestão de tema para o conto: Priscila
Nunes.
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