segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Ponto de vista (01/02/2016)

   
   Estilhaçado e distribuído aleatoriamente pelo chão aquecido de uma tarde de domingo qualquer, o vidro que antes abrigava as amostras agora toma vida, veste uma touca, um casaco preto, uma calça folgada (não muito) e um tênis que não cabe ser descrito aqui. Irreconhecível.
   Com algumas trouxas balançando em ambos os braços, o indivíduo que sai ao sol distribui pelo ar suas palavras violentas, de baixo calão, algo como: “vamos embora!”, com alguns termos impróprios e desnecessários. Logo, outro indivíduo sai daquele vidro que outrora fora chamado de “seguro”. Mais toucas pretas, casacos longos e trouxas balançando, tudo isso cortando o ar e a possibilidade de alguém envolvido ser capturado com facilidade. O som da fechadura é quase imperceptível se comparado ao baque do corpo e das sacolas com a porta dianteira de um veículo que era tudo, menos propriedade daquele que assentou no banco do motorista milésimos de segundos depois.
   A porta traseira abriu, trazendo consigo um corpo apressado, hostil e, consequentemente, desesperado. Antes da borracha “goodyear” gastar sua superfície no asfalto quente, algumas palavras puderam ser ouvidas por que estava apenas observando o show, algo como: “mete o pé, mete o pé!”. A trilha sonora de toda a cena consistia em uma sirene, daquelas bem agudas. Para ajudar a entender, imagine uma menina de dois ou três anos gritando na sua capacidade máxima, vibrando sua úvula freneticamente. O canto dos pneus era um sinal verde para o início de uma nova caçada.
   Resta saber quem é a caça e quem é o caçador.
  Nas grandes savanas africanas, lugares teoricamente isentos da ação humana, a atividade da caça é extremamente perigosa, afinal as presas não são nada passivas com a intencionalidade humana. Por isso, se o animal pretende escapar, ele nunca deverá estar só, afinal outro animal poderá avisá-lo do perigo eminente, de alguma forma. Do outro lado, o destemido caçador deve estar ciente dessa cooperatividade animal e estar com suas virtudes em dia. A arma de fogo, extensão do braço humano que é controlada pelo nervo da indiferença, deve estar carregada o suficiente para que o objetivo seja alcançado. Se estiver com projéteis metálicos ou tranquilizantes poderosos, não sei, depende muito do caçador. Ele não pode, em hipótese alguma, ser visto. Acontece que o instinto é mais forte que o desejo de não ser descoberto, assim como a atitude sempre supera a morosidade. A presa não quer nem saber, parte com toda a sua garra e garras para tentar mudar o seu destino. E então, a covardia vence em forma de balas e pólvora.
   A caça, com toda a sua garra, partia em direção ao destino mais isolado possível, assim como um tigre que procura um lugar sossegado para saborear a gazela. O som da troca de marchas e o ronco do motor são como as patas do tigre golpeando a mata rasteira.
   Nessa selva de vias duplas, pontes, acessos, estradas, ruas, ruelas, vielas, o animal se desloca em sua capacidade máxima para evitar os olhos atentos do caçador. A caça, ao mesmo tempo em que deseja escapar também deseja saber onde o seu inimigo natural se encontra, apenas para ter a certeza do lugar para o qual se refugiaria.

   Mas nessa caçada, o caçador não é tão eficiente quanto o destemido das savanas. Esse caçador precisa ser avisado pela gazela. A gazela deve registrar um boletim de ocorrência. A gazela tem que descrever a numeração da placa do tigre. A gazela tem que ter paciência se quiser os seus órgãos de volta. Feito tudo isso, o caçador partiu com certa insegurança, o que era bem óbvio pois partiu com a sirene ligada, na esperança de que os não-envolvidos abrissem caminho para a sua missão.

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