quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Gratuidade (21/11/2018)

   A partir de qual momento, algo bastante caro passa a ser gratuito? Em uma abordagem econômica, seria perda de valor por obsolescência, danificação, ou simplesmente por tempo de uso. Não podemos excluir a doação. Porém a pergunta que faço não é tão técnica assim, trata-se de um conceito que, para mim, ainda não possui um fundamento lógico plausível: quando alguma coisa se torna gratuita, ela também se torna desprezível?
Considere, por exemplo, a doação. A nível material, há uma relação de gratuidade que é considerada por muitos como valorosa e que está longe de ser desprezível. Não há o que discutir em relação a isso. As coisas começam a ficar estranhas quando consideramos a relevância. A doação, no ponto de vista cristão, é sempre bem vinda, mas ainda estamos na esfera material. O que normalmente é posto para doação, não há relevância para quem doa, pois, a priori, as coisas importantes são inestimáveis. Assim, acabamos em uma contradição muito curiosa, pois a doação valorosa envolve algo que não tem valor real.
   É fácil valorar o que temos no mundo material e estabelecermos relações de troca que envolvam, ou não, quantias de dinheiro. Encontramos algo de estranho nessas relações de vez em quando, o que pode levantar suspeitas, desconfianças e destaques para interesses que permanecem no mundo material. Acontece que trazer as ideias de gratuito e precificado para o mundo onde realmente as coisas acontecem, tudo fica mais imprevisível.
   Afinal, como podemos atribuir valores a sentimentos? Ou melhor, o que são valores na perspectiva do mundo imaterial? Inicialmente, tudo aquilo que podemos identificar, nomear e nos relacionar possui algum significado para a nossa existência, e o que dá significado a elas podemos chamar de “valor”. Essas coisas, ao contrário do que existe no mundo material, não são tão óbvias de serem valoradas, pois sempre há a necessidade de conhecer certos conceitos antes de fazer tais atribuições. Um carro, antes de ser um objeto do mundo material para locomoção de outros objetos, é uma criação com motivos puramente humanos, assim como qualquer invenção e descoberta feita por esse ser.
   Talvez por preguiça, muitos seres humanos não querem ter esse conhecimento prévio. Com esse tipo de pensamento, alguns atalhos foram criados para facilitar a valoração das coisas do mundo imaterial. Assim, nasce a materialização. Por exemplo, a felicidade. Não conseguimos ter uma visão clara do que é a felicidade, muito menose atribuir algum valor. Como ser humano, repleto de reações internas e percepções adquiridas de forma natural, entendemos a felicidade como prazer, alegria, satisfação e conquista, características que podemos identificar de maneira física. Ora, sabemos tanto a respeito do mundo material, por que não interpretar a felicidade nessa perspectiva? A felicidade, portanto, pode ser obtida de forma material de alguma forma, pois é possível ter prazer, alegria, satisfação e conquista nessa perspectiva.
   Existe um caso mais complicado de relacionar com o mundo material e podemos dizer que esse é um dos maiores desafios da humanidade, apesar de ser possível ter a ilusão de que podemos resolvê-lo de maneira simples. A questão é que no mundo imaterial, uma coisa não possui o mesmo valor para todos, e quanto menor for esse “todos”, mais difícil se torna descobrir esse valor. Na medida das nossas capacidades, quando o todo envolve uma quantidade considerável de pessoas, somos capazes de identificar o senso comum, que nada mais é do que um valor igual para os envolvidos. Agora considere o “todo” apenas duas pessoas. Tudo fica mais complexo. Antes de duvidar, consulte nosso amigo Sócrates: sua tentativa de criar um senso comum, à sua maneira, entre dois indivíduos, inclusive ele mesmo, foi o suficiente para embasar gerações por milênios à frente, mas ainda permanece sem conclusão ou resposta, apenas uma longa e interminável discussão para decidir quem é o certo entre duas pessoas, ou simplesmente duas ideias.
   Entre essa difícil decisão e a nossa discussão sobre valores, surge um questionamento muito profundo: o que seria algo imaterial e gratuito? Mais uma vez, recorremos ao mundo material e concluímos que é algo imaterial que não possui valor, obsoleto, desgastado, danificado e, talvez a característica mais marcante, imperfeito. Complicando ainda mais as coisas: entre duas pessoas, o que seria imaterial e gratuito? A violência,por mais que os seus efeitos estejam relacionados a algo visível no senso comum (muitas pessoas) e tenham um aspecto negativos, entre duas pessoas não podemos afirmar o mesmo, pois quando trata-se de agressor e vítimas os valores são completamente opostos. É possível que haja até uma transformação do plano imaterial, por exemplo, da violência tornando-se felicidade, ou vice e versa.
   Entre todas essas incertezas dialógicas, proponho que reflitamos a respeito do amor. Trata-se de algo imaterial, ou seja, impossível de ser valorado sem conhecimento prévio específico. Note que as coisas materiais também precisam ser conhecidas para serem valoradas, mas esse conhecimento ainda pertence ao mundo material. A grande pista que nos é fornecida para responder a essa questão é o fato de que o amor se transforma em vários outras coisas imateriais, dependendo das condições em que duas pessoas decidem explorar os seus efeitos. Ele pode se transformar em ódio, violência, rancor, solidão e muitas outras coisas que, no senso comum de muitas pessoas, se comportam de maneira completamente contrária no mundo material. Então, por fim, o que seria o amor gratuito? Um amor sem valor? Desgastado? Danificado? Imperfeito?
   Sem dúvida alguma, muitos desejam que a característica mais evidente do amor seja a perfeição quando o mesmo é praticado. Mas nesse ponto, erros graves são cometidos e acaba sendo impossível alcançar esse objetivo. O erro, sem dúvida alguma, passa pela tentativa de arrastar o amor para o mundo material, justamente pela necessidade de tentar entendê-lo e, por fim, dominá-lo. Entre duas pessoas, sempre há um lado onde essa tentativa é feita de modo mais desesperador, o que chega ser tão forte a ponto de criar certos ritos que se espalharam pelo senso comum, como o casamento, o namoro, a vontade de formar uma família, etc. Entretanto, muitas vezes essas tentativas são feitas por apenas um lado, e nada garante que resultarão no esperado. Nesse ponto, a perspectiva de mundo material fica de lado e dá lugar ao fenômeno onde o amor perde o seu valor e torna-se gratuito.
   Apesar dessa gratuidade, há sempre alguém que insiste em valorar esse mesmo amor com características que fazem sentido apenas para essa pessoa. Com o tempo, e caso a situação não seja revertida, o que era gratuito passa a ser rejeitado e logo, esquecido.
   Enfim, o mundo imaterial é cheio de quebra-cabeças e podemos dizer que as nossas tentativas de resolvê-los são responsáveis por modar e oferecer condições para a convivência humana de modo geral. As transformações essenciais do mundo imaterial acontecem onde elas são mais complicadas de serem entendidas: entre duas pessoas. Mas em nenhuma delas essa transformação é tão volátil quanto no que nos acostumamos a chamar de amor, pois nunca sabemos se é certo tentar entendê-lo pelo ponto do vista material, pois mesmo que estejamos no plano físico e visível, podemos estar apenas criando ilusões no plano imaterial.

Um comentário:

  1. Felicidade e mais uma ilusão de nosso ego. Toda pessoas que tem como finalidade última ser feliz está condenada a viver a prestação conseguindo o intento de obter o objeto desejado, surge de imediato novos desejos e nova carência que precisa ser suprimida, o pensamento o "ter" e compulsivo e jamais se satisfaz, quando o objeto de desejo e conseguido torna-se desimportante para o indivíduo assim perdendo o seu valor que antes era de grande importância, por que inexistia necessidade para o "EU"imaterial e seus desejos atualmente,
    É importante notar que o bem material em si deixa de ter valor intrínseco. O que importa é nossa identificação com ele.

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