terça-feira, 13 de julho de 2021

Em Falso - Parte II (13/07/2021)

*** Essa era pra ser uma série de contos, porém não quero continuar, então esse é o último ***
 
Ascensão
 
Apresento a vocês um enunciado matemático bem interessante: Qual a probabilidade de uma ave pousar em algum ponto do planeta em que existam pessoas por perto? Bem, basicamente a resposta seria algo como 1 em (a quantidade de lugares em que existam pessoas). Apesar da curiosidade para resolver esse problema, o que é mais interessante é o fato de eu não estar falando de uma ave propriamente dita. Por isso, reformulo a pergunta: Qual a probabilidade de um ser, que consegue voar de maneira inexplicável, pousar em um lugar que haja pessoas em volta?
 
Utilizo o termo “voar” apenas por falta de verbos para descrever tal façanha. Sabemos que, até o momento, seres humanos não são capazes de voar sem ajuda de equipamentos ou meios de transporte, e seria bastante surreal se algo assim fosse presenciado. A sensação de pairar sobre a terra por livre e espontânea vontade, assim como um pássaro que apenas se direciona aos céus quando bem entende, ainda não foi experimentada pelo ser humano.
 
Mas antes que eu descreva como a civilização encontrou essa nova forma de interação com a realidade, nada mais justo eu revelar como o nosso personagem fantástico adquiriu essa habilidade. De fato não é uma habilidade obtida em cursos ministrados em escolas e universidades, e pela impossibilidade de alcançá-la por meio do que já existe como conhecimento reconhecido, torna-se
ainda mais complicado explicar. Por isso, peço atenção. 
 
Um assalariado, comum ao extremo. É dessa maneira que descrevo o nosso personagem do ponto de vista do que ele representa para a sociedade. Assim como toda pessoa comum, que vive sozinha e tem as suas responsabilidades diárias, ele se levantava todas as manhãs, fazia os rituais necessários e, sem muita pressa, girava a chave do carro estacionado no subsolo do condomínio onde vivia, assim como várias pessoas que seguiam a mesma rotina. 
 
Sem sombra de dúvidas o fato de ter seguido regras em sua vida, muitas delas estabalecidas por ele mesmo, o deixou nessa situação. Situação essa muito privilegiada, afinal não se pode negar que ter um bom emprego e estabilidade financeira seja algo bom. Sempre fez o necessário para atingir os seus objetivos e qualquer pessoa que o visse desempenhar sua tarefa (que não vem ao caso para a história) diria que a competência faz parte das suas virtudes. Mas mesmo pessoas assim não estão imunes das singularidades da própria mente. 
 
A incerteza que temos sobre as nossas próprias ações é muito evidente quando paramos para pensar no assunto. Nós realmente não sabemos do que somos capazes de fazer até que provemos a nós mesmos que conseguimos. Algumas coisas são muito simples, como seguir uma dieta e fazer exercícios para obter uma boa forma. Outras, quando realizadas, promovem estado de alegria intensa, como a realização de um sonho há muito tempo almejado. Mas existem aquelas, as impossíveis, que não sabemos com muita certeza como conseguimos fazer, e não estou falando de sorte. Basta um estalo na mente de uma pessoa para que algo assim aconteça, porém a grande questão é como vem esse estalo e, claro, o porquê dele. 
 
O estalo do nosso personagem poderia ter provocado a sua morte, porém nada de mais aconteceu. Ao sair em uma manhã qualquer, ele simplesmente dirigiu sem saber para onde estava indo. Era como se o "GPS" de sua mente tivesse resetado e apenas a habilidade de dirigir permaneceu. Parou nas faixas de pedestre, obedeceu a sinalização em todos os trechos, mas as únicas ações que não conseguia fazer eram parar de dirigir e determinar para onde iria. Não demorou muito tempo para que deixasse a cidade em que vivia e chegou a pagar o pedágio para entrar na próxima, e depois desembolsou mais ainda quando necessário para entrar nas outras. Essa odisséia teria o seu fim ao cair da tarde. O combustível acabou. Entretanto a moção do seu organismo se manteve. 
 
Ele não estava alucinado ou sob o efeito de substâncias. Tinha posse dos documentos necessários para provar quem era, além de uma boa quantia em dinheiro armazenada em sua conta bancária, o que poderia inclusive lhe garantir uma noite em uma pensão, se assim quisesse. Vestido com roupas sociais, uma gravata combinando com a camisa bem passada, sapatos lustrosos e a calça preta, poderia passar a impressão de um homem com pressa para algum compromisso, afinal começou a andar quando não podia mais contar com o carro. Porém da mesma forma, ainda não sabia para onde iria, apenas caminhava. Já era noite, a cidade em que estava era bem movimentada: bares com música ao vivo, restaurantes abertos, pessoas de todos os tipos circulando e esse homem, nessa situação inexplicável. 
 
Ele não se cansava, não sentia fome, não dizia uma só palavra. A madrugada chegou, as ruas começaram a esvaziar e os seus passos ecoavam ao se chocarem com o concreto. Não se sabe ao certo quantos quilômetros ele caminhou naquela noite, mas foi o suficiente para deixar a cidade em que estava e alcançar a zona verde. Seus sapatos não seriam mais úteis, então os tirou. Aqui devo adicionar uma informação sobre a geografia do país em que ele estava, pois sem ela o que eu descreverei a seguir não terá sentido: a cidade em que ele estava é localizada na parte litorânea. Em outras palavras, não demoraria muito para que alcançasse o oceano. 
 
Em sua caminhada já podia sentir a maresia. Seu corpo estava em uma espécie de transe em que todas as funções estão perfeitamente normais, na verdade acima do normal. Ele não estava raciocinando ou com suas ações sob controle. Ele também não agia por instinto. Era apenas um corpo que agia por conta própria e não se sabe até hoje se foi algo sobrenatural. Poucos metros o separavam do penhasco que era banhado pelas águas, e ao invés de cessar a sua caminhada, ele se pôs a correr como nunca antes. Na verdade, algo o pôs a correr. 
 
Seus pés tocaram a ponta do penhasco antes de ficarem suspensos no ar. Assim como todo o seu corpo. Antes estava correndo na maior velocidade que o seu corpo permitia, agora era como se o tempo tivesse parado, o vento forte da manhã fria no litoral havia cessado e, com o fim do transe, retomou a consciência. A reação foi mista, afinal é difícil descrever com exatidão como se sentir quando se está acima das águas do mar, com o corpo suspenso no ar, como se houvesse um chão invisível logo abaixo dos pés. Com medo, disse a si mesmo para não fazer movimentos bruscos, apenas arrastou os pés vagarosamente com o intuito de tentar sair daquela situação e voltar para a terra firme do penhasco o mais rápido possível. Porém a calma tomou conta dele. Ele se sentia muito leve, no sentido físico do termo. Então pensou consigo: "parece que tenho umas quinhentas gramas...". Ao pensar isso, seu corpo desceu um pouco da posição em que estava e no impulso do susto gritou: "EU PESO DEZ! DEZ!!". E o seu corpo voltou a subir. E sim, ele possuía a habilidade de regular o próprio peso apenas pensando ou dizendo. Entretanto isso não afetava a sua forma forma física. Ele não sabia como estava fazendo aquilo, apenas fazia, apenas obteve a habilidade, sem mais. Tudo que estava nele, como as roupas e até mesmo a grama embaixo dos seus pés, também podiam ter o peso regulado por ele. 
 
Ele se viu com a camisa e a calça rasgada, e não sabia como elas estavam assim pois não se lembrava de ter passado por uma parte densa da floresta nos arredores da cidade. Decidiu achar o caminho de casa e trocar de roupa. Simplesmente voltou a caminhar, porém pelo ar. Não conseguia ver mais diferença entre o chão e o ar. Podia regular o peso do corpo de forma que pudesse caminhar sobre as partículas suspensas no ar, o que faz a sua nova habilidade atingir níveis subatômicos. Sentiu vontade de correr e não se conteve. Não havia mais sentido em dizer que sentia o vento, pois ele de certa forma fazia parte dele agora. 
 
De todas as emoções que ele poderia sentir, como êxtase ou prazer por estar fazendo algo além da compreensão humana, ele comparou esse momento a conseguir andar de bicicleta pela primeira vez, apesar de nunca ter sido o seu sonho realizar algo assim. Após alguns quilômetros percorridos de volta para a cidade, dessa vez em bem menos tempo, parou de repente e pensou nas consequências de aparecer dessa forma a alguém, então simplesmente pensou no peso que tinha antes disso tudo acontecer, cerca de setenta quilos, e voltou ao solo em segurança. 
 
Ele se esgueirava pelas paredes dos prédios, de forma que ninguém conseguia percebê-lo, ou pelo menos dizer que ele estava se movimentando de acordo com as partículas do ambiente. Era tão rápido, que o fato dele estar em um lugar e aparecer em outro em poucos instantes era comparável a uma folha que desliza pelo chão com o bater da brisa. Seu corpo não ficava intangível ao regular o peso, simplesmente era visível como qualquer outra pessoa, porém completamente imperceptível aos olhos por estes não serem capazes de acompanhar os seus movimentos. 
 
Não demorou muito para chegar em seu carro estacionado. Não havia sido rebocado por estacionamento irregular e estava do mesmo jeito em que deixou. Com o peso regulado ao normal, entrou no carro e girou a chave para dar partida. No caminho de volta, pensou sobre essa estranhíssima habilidade e sobre o porquê de conseguir fazer algo assim. Inicialmente pensou ser um super-poder, assim como aqueles que se manifestam nos personagens das HQ's, mas não se tratava disso. Primeiramente porque não sentia nenhuma vontade de sair pelas metrópoles do seu país e combater os criminosos e os vilões, algo que não se aplica à sua realidade. Toda essa narrativa sempre fez parte do mundo do entretenimento, e jamais um ser humano, pelo menos a partir do que sabia, havia manifestado tal habilidade e com certeza chocaria qualquer um que presenciasse essa manifestação. 
 
Entretanto essa incerteza tomou conta do seu coração de tal forma, que ao chegar em sua casa após algumas horas dirigindo (e assim percebeu o quanto havia se distanciado de sua cidade), apenas deitou em sua cama e começou a refletir sobre como seria sua vida a partir dali. Ele era um homem trabalhador, assim como muitos, e não imaginava que um dia a sua realidade mudaria tanto e que provavelmente não encontraria alguém que o entendesse. Como a sua habilidade não afetava sua forma física em nenhum aspecto, poderia muito bem voltar ao trabalho no dia seguinte e explicar a sua falta dos dois dias anteriores (afinal um dia ele dirigiu e caminhou sem rumo por horas e no outro estava atrasado e refletindo). Mas de repente, não sentiu vontade de fazer mais nada disso. 
 
Agora ele tinha uma habilidade que o tornava diferente demais das outras pessoas, uma tal que poderia fazê-lo "voar" de certa forma. Sentiu a liberdade correr pelas suas veias e simplemente decidiu abandonar a sua vida da forma que ela era. Ele simplesmente saiu do seu apartamento, deixou tudo do jeito que estava e correu para a cobertura do prédio. Fechou os olhos, imaginou a menor medida que podia para o seu peso e começou a escalar as partículas que via pela frente, em direção aos céus. Por ser leve em uma escala inimaginável, ao balançar as mãos no ar, sua mão tocava as partículas como se fossem pedras, afinal sua densidade não era muito maior que a de um átomo de nitrogênio ou oxigênio, podendo elevar o seu corpo ao fazer movimento de gancho com as mãos. 
 
Foi então, nesse dia, que a humanidade presenciou pela primeira vez o que sempre foi impossivel para ela. A repercussão toda começou com um menino, na sua inocência, que ao olhar para cima viu aquela cena completamente inusitada: havia um homem flutuando no ar e ascendendo aos céus sem usar equipamentos ou, se podemos dizer assim, sem asas. O menino imediatamente gritou para todos em volta: "TEM UM CARA VOANDO!!!". Como de costume algumas pessoas não deram atenção, porém aquelas que deram não podiam acreditar no que estavam vendo. Em poucos segundos após o início da comoção haviam celulares com as câmeras apontadas para cima, com o seus donos espantados, de olhos arregalados e sem muita noção sobre como reagir diante daquela situação. 
 
Nosso personagem já estava em uma altitude que não permitia que escutasse as pessoas o chamando lá embaixo ou o som das sirenes das forças policiais que com certeza foram acionadas por alguém que não soube lidar com o que estava vendo e achou melhor chamar alguma autoridade. Ao olhar para cima, traçou como objetivo chegar às nuvens, entretanto teve que tomar cuidado com uma aeronave se aproximando. O piloto da aeronave, um boeing para ser mais preciso, exergou uma silhueta humanóide no horizonte. Achou que estava imaginando coisas e não se atentou muito para isso. 
 
Ele já podia ver a curvatura no horizonte. As nuvens não estavam tão carregadas quanto pela manhã e as menores já haviam ficado para trás. Continuou escalando até alcançar a primeira nuvem maior que exergasse. Ao chegar na parte de baixo da nuvem, era como se tivesse chegado na boca de um poço fechado ao subir com a ajuda da água. Por mais que quisesse atravessar as partículas densas da base da nuvem, não conseguia. Decidiu ajustar o seu peso mais uma vez, de forma que pudesse deslocar as partículas da sua frente. Talvez por falta de controle, elevou demais o peso e começou a descer. A descida foi brusca, porém no ápice da adrenalina ajustou o seu peso novamente. Quando conseguiu "perfurar" a nuvem, escalou por ela até conseguir exergar o azul do céu novamente. 
 
Ele elevou o seu corpo e conseguir ajustar o seu peso de forma a ficar de pé. A nuvem era bastante instável, mudando de forma a todo momento e movimentando-se de forma que dificultava bastante o ajuste do peso. Quando via que não conseguiria se manter, simplesmente mudava de nuvem.
 
Em poucas horas ele dominou o ajuste de acordo com o comportamento das nuvens. Sentou em uma delas, deixando suas pernas suspensas no ar. Olhou para baixo, sem vertigem. Não via nada em detalhes, distante de tudo e de todos, porém ele tinha certeza que estava longe de sua cidade e quem sabe do seu país, pois em poucas horas de viagem pelas nuvens, tudo que via abaixo de si era a água do oceano. 
 
A partir daquele dia, decidiu viver dessa forma, subindo aos céus para morar nas nuvens e descendo à terra para se alimentar. Ele não sabia o impacto que os registros de sua primeira ascensão causariam em todo mundo. O vídeo que foi postado nas redes sociais viralizou como nenhum outro na história da internet. Em poucas horas, milhões, em poucos dias, bilhões. Hoje esse número de acessos e visualizações beira o incalculável, pois diferentemente de registros forjados, esse viria a ser confirmado pelo próprio protagonista do episódio. 
 
Logo na primeira vez que desceu para comprar comida, as pessoas o reconheceram imediatamente, pois seu rosto ficou conhecido em todas as partes do mundo. Seu apartamento fora revirado e sua vida completamente exposta: fotos, registros pessoais, nome, idade e tudo o que poderia extrair de lá. Ele chegou a ser reverenciado como uma espécie de deus, porém fazia questão de negar quando isso acontecia. Seu relato do dia em que obteve as habilidades foi ouvido por todos e a humanidade teve que reconhecer que, entre os bilhões de habitantes do planeta terra, havia um que era capaz de subir aos céus e descer ao solo, da mesma forma que uma pessoa comum consegue respirar.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Em falso - Parte I (22/12/20)

 *** Essa é uma série de contos, na qual eu vou lançando novas partes (talvez) em dias alternados, espero que gostem

Queda

    A alvorada é intensa, muito intensa. Os primeiros raios de luz do dia atingem diretamente aquelas aberturas, bem estreitas, que separam as pálpebras, fazendo com que a primeira visão do seu dia seja a circunferência do sol. Ao rolar para a direita, sentiu a brisa da manhã tocar o seu rosto, mas também sentiu que se rolasse mais alguns centímetros cairia de sua cama. O mesmo para o seu lado esquerdo. Decidiu então que era hora de acordar.

    Com os pés fixos na lateral da cama, levantou, esticou os braços e dessa vez cada parte do seu corpo recebeu rajadas de vento. Não sentiu necessidade de fazer as coisas próprias da manhã, apenas se dirigiu ao andar de cima. Com um pouco de força para deixar o corpo subir a elevação, levou as mãos às costas e se esticou uma vez mais, bocejando com mais força enquanto desafiava o sol ao abrir os olhos e encará-lo. Sentou onde estava mesmo, cruzou as pernas e parou para observar em volta.

    Branco, tudo branco, com exceção do céu e do brilho do sol. Apesar dessa descrição, a sensação de lugar vazio não passava pela sua cabeça. Diferente do que muitos podem pensar, o fato de exergar apenas o branco abaixo do céu passava uma sensação de infinito, ainda mais evidente com as protuberâncias que as formas brancas deixavam no percorrer do olhar. As sombras formadas a partir dessas ondulações pareciam esconder algo, e como eram muitas que pareciam fazer o mesmo, era quase impossível ter curiosidade o suficiente para verificar todas elas. Assim, mesmo que nunca enxergasse alguém perto de si, a sensação de que sempre havia algo que poderia aparecer a qualquer momento o acompanhava.

    Sua rotina era bem simples na verdade. Não tinha algo para comer quando acordava, até porque se ele deixasse algo guardado na noite anterior para o dia seguinte, não estaria mais lá. Por vários motivos: alguns animais poderiam pegar ou simplesmente cairiam do lugar onde deixou. Devo dizer também que sua casa era muito peculiar: dependendo da hora do dia, ela poderia estar em um lugar e, depois de alguns minutos, ou estar em outro lugar ou simplesmente ter desaparecido. Então, guardar qualquer tipo de objeto sólido não era realmente uma boa ideia. Se quisesse se alimentar, teria que sair de casa, o que era sempre motivo de pânico, mas tinha que fazer. Para isso, procurava no chão algum vestígio de fragilidade, para que não fosse pego de surpresa quando colocasse o pé, o que nunca dava certo pois, dada a condição descrita de sua casa, um ponto que identificara como frágil poderia estar, em poucos segundos, bem abaixo dos seus pés. E bem, foi isso que aconteceu.

    A queda sempre é bem violenta. Tinha que tomar muito cuidado para que suas roupas não saíssem do seu corpo, afinal o vento vindo da direção da queda era muito forte, chegando a ser cortante. Para não ficar cego, sempre fechava os olhos enquanto caía ou olhava para cima, observando sua casa se distanciar. Na única vez que conseguiu olhar para baixo enquanto caía, pôde testemunhar aquilo que era minúsculo ao ver de muito longe, crescer de forma absurda na medida em que se aproxima. Os campos verdes separados em quadrados bem delimitados, enquanto boa parte da paisagem é dominada pelo cinza das construções. Se olhasse para frente, poderia enxergar no horizonte não mais o branco infinito com o qual convive, e sim o chão duro, muitas vezes impermeável, presente em toda direção possível.

    Apesar de todo o caminho vertical feito de maneira brusca, sempre conseguia regular o peso do seu corpo para que chegasse de maneira segura no solo. Ele não sabia voar obviamente, porém de tanto descer de sua casa dessa forma, desenvolveu essa habilidade de mudar o peso do corpo ao seu gosto. Dessa vez, o lugar em que parou não tinha muitas pessoas em volta, e mesmo com algumas tendo observado a sua chegada, não ficaram assustadas ou curiosas ao extremo. Nas primeiras vezes que fez isso, a reação das pessoas não era nada normal.

    A primeira vez em específico aconteceu em um lugar bem isolado da civilização, com apenas alguns animais tendo visto sua descida. Porém, quando desceu em um lugar com pessoas, devo dizer que eram muitas reunidas, tudo mudou em relação ao que era possível ou não para um ser humano fazer.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Salão (17/12/20)

O eco dos passos naquele chão de granito só deixava mais evidente o silêncio daquele lugar escuro e vazio. Realmente não havia nada para fazer naquele lugar. Tão vazio e tão sem vida.
Ao tocar as paredes, intercaladas por grandes pilares cilíndricos, o frio que passava pela ponta dos dedos e chegava aos sensores da pele deixava, além de uma sensação de inseguranca, medo em qualquer um que fizesse isso. Porém, de todas as formas possíveis de se encarar um medo, a única possível em uma situação que não se pode escapar, parece ser apenas ficar parado, esperando alguma pista do que pode ser o motivo de tanta apreensão.
    Algo cai no chão e o barulho reproduzido com o impacto desperta aquele calafrio ascendente, que chega a arrepiar cada fio de cabelo. Pelo som, algo como uma caixa parece ter caído de alguma parte de cima daquele lugar tão misterioso. A vontade de espiar realmente é inquietante, porém o medo é maior. Não se sabe o que pode estar dentro da caixa. Quem sabe até uma criatura misteriosa tenha vindo junto com a caixa, tenha saído e esteja observando atentamente, parada, apenas esperando seu alvo se mover bruscamente.
    Acontece que, depois de algum tempo, nada se sucedeu após a queda da caixa e o silêncio se instalara da mesma forma. A curiosidade mista ao medo de se aproximar do objeto desconhecido criam um conflito torturante para qualquer pessoa em situação semelhante. Lentamente as mãos desencostam da parede e os calcanhares começam a levantar o corpo tomado por incertezas.
    Apesar da escuridão daquele lugar, à medida em que se aproximava da caixa, o seu entorno tornava-se cada vez mais iluminado, como se aquele objeto tivesse uma conexão direta com aquele que se aproximasse dele. É estranho o quanto a luz, mesmo sendo algo tão natural e comum, tem o poder de oferecer tantas coisas sem as quais não podemos viver sem. Nesse caso, além de aliviar a tensão criada por aquele ambiente, também oferecia calor, um contraste marcante para quem apenas sentia frio.
    Ajoelhado próximo a caixa, ao retirar a tampa que havia permanecido acima da abertura, pôde perceber que realmente não havia nada para ter medo, afinal ali dentro estavam alguns objetos bem aleatórios, como fotos, brinquedos e alguns pedaços rasgados de papel. Pensou. A conclusão poderia ser simples a esse ponto e bastaria fechar a caixa, voltar àquele canto frio e esperar pelo que aconteceria em seguida. E assim pensou em fazer. Porém, um milissegundo antes de fechar a caixa, percebeu algo estranho, um sentimento de que havia visto algo daquela caixa antes. Colocou a tampa de lado mais uma vez e esticou o braço até o fundo da caixa para alcançar o item. Era uma foto, já sem cor e bem antiga.
    A foto registrava duas pessoas sentadas em um banco de praça, aparentemente conversando uma com a outra. Um detalhe bastante perturbador era que ambos os rostos estavam borrados, como se alguém tivesse feito de propósito. A estranheza da foto não deixava de despertar um sentimento de familiaridade e resolveu guardá-la em um de seus bolsos. Ainda não queria fechar a caixa, pois queria ter certeza de que não havia mais nada ali que provocasse a mesma sensação.
    A curiosidade em descobrir o restante dos objetos acabou elevando a atenção e pouco a pouco retirando os objetos da caixa, cada um deles pelo mesmo motivo, sentia que eles tinham algo a ver com a situação. Não demorou muito para esvaziar a caixa.
    Sentado com todos aqueles objetos diante de si, resolveu buscar na memória cada um deles, começando pelo pedaço de papel com algumas palavras escritas nele. Sabia que as palavras escritas ali representavam um nome de alguma pessoa, mas poderia ser qualquer uma, afinal não reconhecera. Junto a esse pedaço de papel haviam muitos outros, todos com nomes que não conseguiu reconhecer.
    O próximo objeto que parou para analisar foi um brinquedo, ou pelo menos a aparência dele sugeria isso, dada a intenção lúdica em sua forma. Tratava-se de uma caixinha com várias peças montáveis em seu interior. Mas havia, entre todas essas peças, uma diferente de todas, como se fosse uma daquelas peças que são colocadas nos brinquedos para representarem o que de fato elas sugerem. No caso dessa, era uma peça em formato de coração, no sentido ilustrativo da palavra. Aquela peça em específico chamou muito sua atenção e resolveu guardá-la em seu bolso, junto a foto.
    Poderia ter ficado mais tempo tentando desvendar aqueles objetos, mas teve um presságio, uma sensação de que algo estava para acontecer. Recolheu todos aqueles objetos e os colocou de volta na caixa, fechando a tampa em seguida. Um pedaço de papel acabou saindo da caixa, ao deslizar do verso da tampa à borda da abertura. Ao se abaixar para recolher o papel, um tremor abalou a estrutura daquele salão. Cambaleou e caiu de joelhos no piso de granito, o qual ainda não havia parado de tremer, formando rachaduras em sua superfície e ameaçando a segurança de quem estivesse sobre ele. Antes que pudesse devolver o papel à caixa, uma cratera se abriu e engoliu a caixa, o que fez guardá-lo junto aos demais objetos do seu bolso em um movimento rápido, porém desesperado. O chão não demorou para criar aclives e declives entre as rachaduras e desestabilizar os grandes pilares do salão, fazendo com que desabassem e, enfim, engolindo tudo naquele lugar.
    Esperava que os escombros esmagassem o seu corpo, mas não foi o que aconteceu. Enquanto tentava abrir os olhos após sofrer tamanho choque, viu que que os escombros estavam flutuando acima do seu corpo, como se o salão fosse uma estrutura suspensa em uma parte do mundo em que as leis da física não ditam o que é ou não impossível. E entre essas coisas impossíveis, o seu corpo estava flutuando e caindo lentamente em uma relva, intacto e sem feridas.
    Com o corpo totalmente estendido sobre o gramado, conseguiu recuperar o controle dos seus membros e levantou apenas o seu tronco para ver em volta. Seus olhos percorreram todo o lugar e não enxergava mais ninguém. Pelo menos naquele campo de visão. Ficou de pé e forçou a vista para identificar alguma coisa além daquele campo de grama baixa e infinito. Como se pudesse atravessar o horizonte, identificou, bem longe, um banco de praça.
    A caminhada foi longa, porém não perdeu o banco de vista. Ao chegar, apenas sentou-se e parou para pensar no que estava acontecendo. Os objetos que guardou estavam no bolso, os três: a foto, o pedaço de papel com um nome e a peça de brinquedo em forma de coração.
Mais uma vez tentou lembrar se conhecia alguém com aquele nome. "Quem sera que se chama '...' ? ", pensou alto.
    Com a visão voltada para o papel, não percebeu a silhueta da pessoa que se aproximava e que sentou-se ao seu lado. Se deu conta com alguns segundos de atraso, e antes que pudesse olhar o rosto da pessoa, seu olhar passou pelos braços, cujo os mesmos estavam descansados sobre as pernas daquela pessoa. Pela delicadeza da pele, poderia concluir que era uma mulher, mas não confirmou antes de ver seu rosto. Tentou, mas antes que pudesse ver o rosto uma luz intensa atingiu seus olhos, quase cegando e forçando recuar a vista em um brusco movimento a fim de evitar danos.
    Quando recobrou a visão, aquela pessoa não estava mais lá, porém ela deixou alguns objetos. Três objetos eles eram: um pedaço de papel, a peca em forma de coração e uma foto.
    O nome no pedaço de papel que essa pessoa deixara era o seu nome, a peça era exatamente igual a que tinha. Porém a foto era o único objeto diferente, pois os rostos não estavam borrados. O cenário era o mesmo: o banco de praça e duas pessoas conversando. Uma dessas pessoas era ele mesmo, contente, sorridente e nítidamente com um semblante apaixonado. Percebeu que cada um dos acontecimentos até ali tiveram o objetivo de fazer lembrar daquela pessoa, daquele momento. Sua mente é um lugar escuro e vazio quando se sente sozinho, mas basta tentar recordar de momentos felizes com alguém que amou ou ama de verdade, que toda essa estrutura fechada e claustrofóbica desmorona.
    Apesar disso, as tentativas de sair desses momentos de solidão são constantes e nunca acabam até o fim da vida. Fechou os olhos mais uma vez, mesmo tendo aquele lugar calmo e pacífico para apreciar. Mais uma vez estava no salão escuro e frio. Uma caixa acabara de cair de algum lugar da parte de cima do salão.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Gratuidade (21/11/2018)

   A partir de qual momento, algo bastante caro passa a ser gratuito? Em uma abordagem econômica, seria perda de valor por obsolescência, danificação, ou simplesmente por tempo de uso. Não podemos excluir a doação. Porém a pergunta que faço não é tão técnica assim, trata-se de um conceito que, para mim, ainda não possui um fundamento lógico plausível: quando alguma coisa se torna gratuita, ela também se torna desprezível?
Considere, por exemplo, a doação. A nível material, há uma relação de gratuidade que é considerada por muitos como valorosa e que está longe de ser desprezível. Não há o que discutir em relação a isso. As coisas começam a ficar estranhas quando consideramos a relevância. A doação, no ponto de vista cristão, é sempre bem vinda, mas ainda estamos na esfera material. O que normalmente é posto para doação, não há relevância para quem doa, pois, a priori, as coisas importantes são inestimáveis. Assim, acabamos em uma contradição muito curiosa, pois a doação valorosa envolve algo que não tem valor real.
   É fácil valorar o que temos no mundo material e estabelecermos relações de troca que envolvam, ou não, quantias de dinheiro. Encontramos algo de estranho nessas relações de vez em quando, o que pode levantar suspeitas, desconfianças e destaques para interesses que permanecem no mundo material. Acontece que trazer as ideias de gratuito e precificado para o mundo onde realmente as coisas acontecem, tudo fica mais imprevisível.
   Afinal, como podemos atribuir valores a sentimentos? Ou melhor, o que são valores na perspectiva do mundo imaterial? Inicialmente, tudo aquilo que podemos identificar, nomear e nos relacionar possui algum significado para a nossa existência, e o que dá significado a elas podemos chamar de “valor”. Essas coisas, ao contrário do que existe no mundo material, não são tão óbvias de serem valoradas, pois sempre há a necessidade de conhecer certos conceitos antes de fazer tais atribuições. Um carro, antes de ser um objeto do mundo material para locomoção de outros objetos, é uma criação com motivos puramente humanos, assim como qualquer invenção e descoberta feita por esse ser.
   Talvez por preguiça, muitos seres humanos não querem ter esse conhecimento prévio. Com esse tipo de pensamento, alguns atalhos foram criados para facilitar a valoração das coisas do mundo imaterial. Assim, nasce a materialização. Por exemplo, a felicidade. Não conseguimos ter uma visão clara do que é a felicidade, muito menose atribuir algum valor. Como ser humano, repleto de reações internas e percepções adquiridas de forma natural, entendemos a felicidade como prazer, alegria, satisfação e conquista, características que podemos identificar de maneira física. Ora, sabemos tanto a respeito do mundo material, por que não interpretar a felicidade nessa perspectiva? A felicidade, portanto, pode ser obtida de forma material de alguma forma, pois é possível ter prazer, alegria, satisfação e conquista nessa perspectiva.
   Existe um caso mais complicado de relacionar com o mundo material e podemos dizer que esse é um dos maiores desafios da humanidade, apesar de ser possível ter a ilusão de que podemos resolvê-lo de maneira simples. A questão é que no mundo imaterial, uma coisa não possui o mesmo valor para todos, e quanto menor for esse “todos”, mais difícil se torna descobrir esse valor. Na medida das nossas capacidades, quando o todo envolve uma quantidade considerável de pessoas, somos capazes de identificar o senso comum, que nada mais é do que um valor igual para os envolvidos. Agora considere o “todo” apenas duas pessoas. Tudo fica mais complexo. Antes de duvidar, consulte nosso amigo Sócrates: sua tentativa de criar um senso comum, à sua maneira, entre dois indivíduos, inclusive ele mesmo, foi o suficiente para embasar gerações por milênios à frente, mas ainda permanece sem conclusão ou resposta, apenas uma longa e interminável discussão para decidir quem é o certo entre duas pessoas, ou simplesmente duas ideias.
   Entre essa difícil decisão e a nossa discussão sobre valores, surge um questionamento muito profundo: o que seria algo imaterial e gratuito? Mais uma vez, recorremos ao mundo material e concluímos que é algo imaterial que não possui valor, obsoleto, desgastado, danificado e, talvez a característica mais marcante, imperfeito. Complicando ainda mais as coisas: entre duas pessoas, o que seria imaterial e gratuito? A violência,por mais que os seus efeitos estejam relacionados a algo visível no senso comum (muitas pessoas) e tenham um aspecto negativos, entre duas pessoas não podemos afirmar o mesmo, pois quando trata-se de agressor e vítimas os valores são completamente opostos. É possível que haja até uma transformação do plano imaterial, por exemplo, da violência tornando-se felicidade, ou vice e versa.
   Entre todas essas incertezas dialógicas, proponho que reflitamos a respeito do amor. Trata-se de algo imaterial, ou seja, impossível de ser valorado sem conhecimento prévio específico. Note que as coisas materiais também precisam ser conhecidas para serem valoradas, mas esse conhecimento ainda pertence ao mundo material. A grande pista que nos é fornecida para responder a essa questão é o fato de que o amor se transforma em vários outras coisas imateriais, dependendo das condições em que duas pessoas decidem explorar os seus efeitos. Ele pode se transformar em ódio, violência, rancor, solidão e muitas outras coisas que, no senso comum de muitas pessoas, se comportam de maneira completamente contrária no mundo material. Então, por fim, o que seria o amor gratuito? Um amor sem valor? Desgastado? Danificado? Imperfeito?
   Sem dúvida alguma, muitos desejam que a característica mais evidente do amor seja a perfeição quando o mesmo é praticado. Mas nesse ponto, erros graves são cometidos e acaba sendo impossível alcançar esse objetivo. O erro, sem dúvida alguma, passa pela tentativa de arrastar o amor para o mundo material, justamente pela necessidade de tentar entendê-lo e, por fim, dominá-lo. Entre duas pessoas, sempre há um lado onde essa tentativa é feita de modo mais desesperador, o que chega ser tão forte a ponto de criar certos ritos que se espalharam pelo senso comum, como o casamento, o namoro, a vontade de formar uma família, etc. Entretanto, muitas vezes essas tentativas são feitas por apenas um lado, e nada garante que resultarão no esperado. Nesse ponto, a perspectiva de mundo material fica de lado e dá lugar ao fenômeno onde o amor perde o seu valor e torna-se gratuito.
   Apesar dessa gratuidade, há sempre alguém que insiste em valorar esse mesmo amor com características que fazem sentido apenas para essa pessoa. Com o tempo, e caso a situação não seja revertida, o que era gratuito passa a ser rejeitado e logo, esquecido.
   Enfim, o mundo imaterial é cheio de quebra-cabeças e podemos dizer que as nossas tentativas de resolvê-los são responsáveis por modar e oferecer condições para a convivência humana de modo geral. As transformações essenciais do mundo imaterial acontecem onde elas são mais complicadas de serem entendidas: entre duas pessoas. Mas em nenhuma delas essa transformação é tão volátil quanto no que nos acostumamos a chamar de amor, pois nunca sabemos se é certo tentar entendê-lo pelo ponto do vista material, pois mesmo que estejamos no plano físico e visível, podemos estar apenas criando ilusões no plano imaterial.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Supervisores de máquinas - 17/10/2018



   A gota de suor escorre pela mandíbula exausta após mais um esforço de ser violento, artísticamente falando. É um daqueles momentos de exaustão prazerosa, na qual é possível liberal sentimentos negativos e, paradoxalmente, positivos, a partir do momento em que o alvo de agrado não é apenas o sujeito. A respiração ofegante ressoa nos amplificadores, mas o som é imperceptível vista a agitação daqueles que reservaram um tempo apenas para ver o que aquela figura exótica de cabelos longos tem a oferecer.
   O microfone, perigosamente umedecido, é apenas uma ferramenta para expressar a euforia de executar aqueles acordes difíceis, riffs velozes e catalisadores para a agressividade daquilo que chamamos de música extrema. O conteúdo lírico das composições normalmente é padrão para esse tipo de som, o que não é interpretado de forma negativa por aqueles que gostam do estilo, afinal é o que deixa a marca, é o que passa o sentimento daqueles que sentem prazer ao ouvir e “bater cabeça” ao mesmo tempo. Imagine todo o momento como uma grande máquina em funcionamento: o propósito da máquina é produzir som alto, estimulante e indispensavelmente agressivo. Os speakers da máquina seriam representados pela figura do vocalista. Os braços mecânicos e as engrenagens, que produzem som durante o atrito e trabalham em perfeita sincronia seriam as guitarras. A graxa e o óleo, responsáveis por fazer o atrito das engrenagens mais rápido e mais suave, apesar da agressividade dos movimentos, seria representados pelo baixo. O motor, dependente das engenagens e necessário às mesmas, trabalhando em conjunto para manter a máquina funcionando a todo vapor, seria a bateria, incansável.
   Entre uma música e outra, há um sentimento bastante confuso, pois há uma mistura de felicidade por ter acabado de escutar a música querida com a tristeza pelo mesmo motivo, o que é imediatamente substituído pela felicidade no início de mais uma música e que logo se torna confuso por definitivo quando a apresentação acaba.
   Normalmente as apresentações acontecem à noite e em lugares fechados, mais pela temática noturna do que pela acústica, o que caracteriza bem o cenário que aprendemos a chamar de underground. Todos os que assistem às apresentações querem escutar uma boa música, fazer parte do momento, curtir algumas horas com os amigos e logo depois voltarem às suas vidas.
   O jeito violento de expressar paixão pela música pode ser incompreendido por pessoas fora desse contexto, mas a ideia por trás de um famigerado moshpit, é comparável ao que os espectadores de uma orquestra sinfônica manifestam ao ouvir as peças clássicas. O fato de ser diferente não torna a música moderna, mas torna-se adequada para aqueles que procuram algum jeito de relacionar os sentimentos mais profundos com algo que reúna várias pessoas, o que é completamente contrário à noção de solidão dos ouvintes.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Isolamento (27/09/2018)


    Antes do sol mostrar os seus raios, uma grande movimentação é iniciada. Por algum motivo, todos recebem o mesmo acessório: uma venda negra. Um por um, ao chegar a vez na fila, além de receber o objeto, é orientado a não tirar em hipótese alguma, pois há riscos irreparáveis. Quando a fila esvazia, o dia pode começar.
   É incrível o fato de que mesmo vendado, o ser humano consegue executar suas tarefas normalmente. Desde tomar a direção de um carro, a levantar a ferramenta pesada. Ele também consegue ler, escrever, conversar, preparar o café da manhã, fazer exercícios físicos e tudo aquilo que um ser humano tem direito abaixo do sol e da lua.
    Entretanto nem todos recebem a venda, simplesmente porque não puderam entrar na fila. Não puderam pois estavam totalmente fora dos requisitos, afinal são necessárias condições adequadas para a manutenção do objeto, simplesmente pelo fato do mesmo custar caro àqueles que fornecem. As condições são muito simples. A venda deve ser mantida em local arejado, aconchegante e inevitavelmente conformista. A venda não pode estar exposta à negligências na manutenção do ambiente, tais como falta de etiqueta, modos de comportamento e descuidos estéticos em relação às vestimentas com as quais a venda será exposta.
    O fato de não receber a venda é determinante para as relações sociais, pois apenas quem possui a venda é capaz de se comunicar da maneira que melhor convém, o que implica na exclusão do restante. Justamente por esse motivo é recomendado que não seja retirada enquanto o sono não vier. De maneira análoga, essa exclusão provoca o fenômeno chamado “isolamento”, e tal fenômeno só é observável quando a venda é retirada. Os fornecedores aconselham a não-observação desse “isolamento”, pois pode causar consequências graves para a ordem da sociedade.
   O “isolamento” possui características muito peculiares, e pode ser entendido com a negação de todos os privilégios daqueles que possuem a venda. Aqueles que possuem a venda nunca passam frio à noite, já os isolados passam. Os que possuem a venda se alimentam regularmente e na hora que bem entendem, já os isolados, em muitos casos, nem mesmo matam a sede. Aqueles que possuem a venda podem agradar, esteticamente e intelectualmente, apenas outros que possuem a venda. Já os isolados são sequer vistos.
   Aqueles que, por algum motivo tolo, retiraram a venda, acabaram tornando-se isolados de forma inevitável. Eu posso afirmar isso com toda certeza, afinal estou nessa condição. Daqui em diante vou relatar a experiência de ter retirado a venda.
Quando acordo, estou sem a venda. A imagem que vejo no espelho não é das mais agradáveis, afinal todos os que usam a venda são bem vestidos e asseados. Rapidamente tomo as ações necessárias para me manter ao nível de todos os outros. De uma maneira geral, todas as ações são iguais para todos os que possuem a venda, desde abrir os olhos até o momento de pegar a fila e receber a venda.
   A fila sempre foi um momento estressante. Além de ser gigantesca, normalmente todas as pessoas estão estressadas ou, de alguma forma, irritadas com algo, apesar de ser apenas o começo do dia. Uma a uma, as vendas são entregues para os seus respectivos usuários. Cada uma possui um manual de usuário com especificações de uso diário, algo bastante inovador para esse tipo de produto. Outro grande diferencial desse suporte ao usuário é o fato de que não existem manuais iguais, visto que a venda é produzida sob medida e mediante uma demanda individual do usuário. Apesar disso, o propósito e o viés da venda e do manual são os mesmos para todas as unidades.
   Após uma longa espera para receber a minha venda, finalmente pude pegá-la e seguir com os mesmos afazeres de sempre, todos eles determinados pela venda. Comecei uma longa caminhada pela rota indicada pelo manual e iniciei o meu dia. Sempre quando caminhava pela rota, não tinha a mínima noção de espaço e de tempo, pois apenas caminhava e não enxergava um palmo à minha frente. Para mim, não fazia a mínima diferença andar em linha reta, subir degraus, descer degraus, parar para descansar, sentar ou andar em círculos, pois após um tempo de uso da venda nenhuma dessas ações são discerníveis.
   Eu ainda não sei o porquê, mas apesar da estranheza do acontecido, não houve remorso ou tristeza, apenas cansaço. Eu decidi correr ao invés de caminhar, ou seja, quebrar o protocolo da venda. O risco de sair da rota é muito grande quando os passos são apressados, pois há limites que separam as rotas e é impossível saber quando começam ou quando acabam, assim como saber o que existe além dos limites da rota.
   O momento não durou dois segundos, porém durou o suficiente para provocar uma imensa dor em meus olhos. Após correr durante uma longa distância, percebi que havia pisado em algo infalso e frágil. Enquanto sentia os meus pés esparramarem algo, o nó responsável por segurar a venda em minha cabeça desatou e flutuou até o solo da rota. A luz ofuscante me cegou e provocou imensa dor. Não consegui abrir os olhos por vários minutos.
   Aos poucos fui recuperando a visão. Inicialmente senti tonturas e uma vontade torturante de voltar para a rota, recolocar a venda e permanecer descansando na rota até acabar o meu dia. Torturante pois por mais que eu tentasse voltar eu não conseguia. Um grande muro de areia se erguia toda vez que eu me aproximava da rota.
   De tanto me concentrar em voltar para a zona de conforto da rota, esqueci-me completamente de que o ambiente externo à rota tornava-se cada vez mais nítido. Após olhar em volta, decidi parar de agir impulsivamente e descansar ali mesmo, naquele ambiente estranho, apesar de sempre ter caminhado em volta dele. Levantei-me após um longo tempo de observação e reposição de fôlego.
    É impossível não perceber a metamorfose imediata ao retirar a venda. Todas as pessoas à minha volta estavam igualmente sem, de olhos nus, olhando fixamente para mim. Os boatos eram verdadeiros: muitos deles não cheiravam bem, outros se cobriam com trapos e também não cheiravam bem. Alguns não conseguiam andar direito, outros nem mesmo conseguiam enxergar, mesmo sem a venda. Outros apenas mantinham a cabeça baixa.
   De alguma forma, senti que todos ali precisavam de ajuda, mas após alguns minutos ali, conversando com cada um deles, percebi o meu siginificado como ser humano, afinal até aquele momento eu não fazia ideia de que no isolamento poderia existir tantas pessoas que sempre olharam para mim enquanto me mantinha omisso e cego para a realidade que de fato fazia sentido no mundo em que vivo. E após ouvir tantas pessoas, percebi também – e essa foi a causa para a minha transformação em isolado – que um dos culpados para toda aquela situação avessa à realidade daqueles que se mantém caminhando pela rota, era eu mesmo.
    Fiquei sem ação, pois agora podia ver todas as pessoas, isoladas e não isoladas, e vi que não era difícil sair da rota, apenas as pessoas vendadas que não queriam. Ignoravam tudo em volta e continuavam os seus caminhos.

domingo, 16 de setembro de 2018

Pequenez (16/09/2018)


    Todo lugar sujo, antes de assim ser considerado, foi observado por alguém que possui um conceito próprio de sujeira. Esse conceito é muito individual, pois nem sempre o que é sujo está realmente sujo na visão de segundo ou terceiro. O mesmo raciocínio vale para o que consideramos limpo.
    O fato de não sermos oniscientes, além de ser frustrante em situações corriqueiras, não é óbvio à primeira vista. Imagine se soubéssemos tudo o que acontece ao nosso redor, no sentido mais ontológico possível. Seria uma completa tragédia, afinal o conhecimento não se limitaria ao mundo externo, pois o fator pessoal, intrínseco, poderia motivar ódio ou paixão, ambos de maneira exacerbada. Claro, tais especulações são possíveis apenas se todos os seres humanos, de súbito, se tornassem oniscientes, afinal essa é a realidade que temos, ou não, em mãos.
    Justamente por não sermos oniscientes, o mundo em que vivemos encarrega-se de deixar os objetos de conhecimento prontos para que possamos ver, conhecer, viver, explorar, maltratar, insultar e, talvez, amar. Porém, aquilo que não percebemos, o que não implica apenas em ver, pode se tornar o agente ativo dessa relação epistemológica, sendo nós mesmos os objetos. Assim, existem lugares passivos de serem limpos após o julgamento sobre a sua conservação superficial, mas que dificilmente são percebidos. São nesses lugares onde existem seres, mesmo que inofensivos e microscópicos, capazes de nos observar e fazer de nós seu objeto de apreciação.
    Em um desses lugares, uma pequena fresta dá espaço para uma saída de luz. A pequenez do lugar é considerável, entretanto isso não é motivo para impedir a movimentação do ser em questão. Subindo e descendo freneticamente pelas protuberâncias microscópicas, o seu reconhecimento da geografia do lugar é abundante, entretanto jamais foi capaz de desvendar os mistérios daquela abertura de luz. Talvez fosse impossível o feito, afinal sua vida é mais parecida com um momento ou suspiro para o ser humano.
Apesar de não saber do que se tratava, o apagar e o acender de luzes claramente não incomodava suas atividades habituais, que consistiam em carregar resíduos em suas costas pequenas e frágeis. Entretanto, era inevitável perceber as mudanças repentinas na claridade do ambiente em momentos de descanso. Além dessas mudanças de luminosidade, a sonoridade do lugar também mudava constantemente, não somente devido a acústica do lugar – pois era um ambiente completamente fechado, apenas a abertura para a luz era a exceção –, mas alguns tipos de vibrações sonoras não identificáveis para o seu entendimento faziam parte do seu dia-a-dia. Como se não bastasse, o lugar era acometido por tremores, tão fortes que tiravam o seu corpo do lugar com violência, sendo na maioria das vezes aparado pelas formações rochosas responsáveis pelas penumbras.
    De fato, sua vida mais se parecia com uma prisão à moda dos filmes de Hollywood da década de setenta em diante, carregando pesados volumes sem um propósito especial, privado de conhecer o mundo externo.
    Temos a certeza de que é improvável a polícia de um ser dessa natureza e nessas condições em relação às ações de outros seres. Sua incapacidade para alcançar a abertura e, quem sabe, encontrar novas perspectivas para a sua vida, além da falta de motivação para tal, eram fatores cruciais para que os últimos dias de sua vida fosse ali, no escuro, com pedras e um sol, às vezes presente, outras nem tanto, mas pelo menos enquanto estivera ali, nunca havia se apagado.
    Se não fosse pela imprevisibilidade dos outros seres, o dia de dizer adeus parecia ser adiado, mas foi graças a isso que essa forma de vida pôde alcançar o que sempre ignorou, simplesmente por considerar impossível para a sua capacidade física. Dessa vez, o tremor foi exageradamente forte. Com os solavancos impiedosos do chão em que pisava, fora jogado ao alto diversas vezes. Em um violento impulso, seu corpo, aos poucos, se encontrava com a luz.
    Ao tocar na superfície daquela estranha forma rochosa, percebeu que a luz tinha se tornado várias formas. Cores, sons que costumava perceber, porém mais evidentes agora. Diante de si, um ser de tamanho colossal em relação ao seu movimentava-se de maneira frenética, emitindo sons muito altos e, sem sombra de dúvidas, deixando o observador completamente desorientado. A paralisia tomou conta de seu corpo e não conseguia se mexer em hipótese alguma. Se ele fosse para qualquer um dos lados, cairia em um abismo, a diferença era que um abismo ele já conhecia, o outro não.
    Além desse ser que se movimentava no lugar revelado, havia outro, este mais contido, quieto, comprimido, enquanto aquele continuava a se movimentar. Após mais sons altos e movimentos, o ser retirou um objeto de alguma parte do seu corpo, apontou para o ser contido e, após dois impactos precedidos de sons que o observador jamais havia escutado, ele, que pendia para os abismos perdeu o equilíbrio e, sem ação, mergulhou na parte clara do abismo e finalmente seu corpo se encontrou em um grande mar vermelho.
   Mesmo sem saber o significado de todos aqueles acontecimentos, aquele ser testemunhou um dos atos mais contraditórios que qualquer ser poderia realizar. Enquanto se afogava no mar vermelho e dava seu último suspiro de vida, nunca poderia imaginar que o ser imóvel ao seu lado, apesar de gigante, queria ser como ele: pequeno, imperceptível, observador e inocente. Queria apenas ser uma formiga.