*** Essa era pra ser uma série de contos, porém não quero continuar, então esse é o último ***
Ascensão
Apresento a vocês um enunciado matemático bem interessante: Qual a probabilidade de uma ave pousar em algum ponto do planeta em que existam pessoas por perto? Bem, basicamente a resposta seria algo como 1 em (a quantidade de lugares em que existam pessoas). Apesar da curiosidade para resolver esse problema, o que é mais interessante é o fato de eu não estar falando de uma ave propriamente dita. Por isso, reformulo a pergunta: Qual a probabilidade de um ser, que consegue voar de maneira inexplicável, pousar em um lugar que haja pessoas em volta?
Utilizo o termo “voar” apenas por falta de verbos para descrever tal façanha. Sabemos que, até o momento, seres humanos não são capazes de voar sem ajuda de equipamentos ou meios de transporte, e seria bastante surreal se algo assim fosse presenciado. A sensação de pairar sobre a terra por livre e espontânea vontade, assim como um pássaro que apenas se direciona aos céus quando bem entende, ainda não foi experimentada pelo ser humano.
Mas antes que eu descreva como a civilização encontrou essa nova forma de interação com a realidade, nada mais justo eu revelar como o nosso personagem fantástico adquiriu essa habilidade. De fato não é uma habilidade obtida em cursos ministrados em escolas e universidades, e pela impossibilidade de alcançá-la por meio do que já existe como conhecimento reconhecido, torna-se
ainda mais complicado explicar. Por isso, peço atenção.
Um assalariado, comum ao extremo. É dessa maneira que descrevo o nosso personagem do ponto de vista do que ele representa para a sociedade. Assim como toda pessoa comum, que vive sozinha e tem as suas responsabilidades diárias, ele
se levantava todas as manhãs, fazia os rituais necessários e, sem muita pressa, girava a chave do carro estacionado no subsolo do condomínio onde vivia, assim como várias pessoas que seguiam a mesma rotina.
Sem sombra de dúvidas o fato de ter seguido regras em sua vida, muitas delas
estabalecidas por ele mesmo, o deixou nessa situação. Situação essa muito privilegiada, afinal não se pode negar que ter um bom emprego e estabilidade financeira seja algo bom. Sempre fez o necessário para atingir os seus objetivos
e qualquer pessoa que o visse desempenhar sua tarefa (que não vem ao caso para a história) diria que a competência faz parte das suas virtudes. Mas mesmo
pessoas assim não estão imunes das singularidades da própria mente.
A incerteza que temos sobre as nossas próprias ações é muito evidente quando paramos para pensar no assunto. Nós realmente não sabemos do que somos capazes de fazer até que provemos a nós mesmos que conseguimos. Algumas coisas são
muito simples, como seguir uma dieta e fazer exercícios para obter uma boa forma. Outras, quando realizadas, promovem estado de alegria intensa, como a realização de um sonho há muito tempo almejado. Mas existem aquelas, as impossíveis, que não sabemos com muita certeza como conseguimos fazer, e não estou falando de sorte. Basta um estalo na mente de uma pessoa para que algo assim aconteça, porém a grande questão é como vem esse estalo e, claro, o porquê dele.
O estalo do nosso personagem poderia ter provocado a sua morte, porém nada de
mais aconteceu. Ao sair em uma manhã qualquer, ele simplesmente dirigiu sem saber para onde estava indo. Era como se o "GPS" de sua mente tivesse resetado
e apenas a habilidade de dirigir permaneceu. Parou nas faixas de pedestre, obedeceu a sinalização em todos os trechos, mas as únicas ações que não conseguia fazer eram parar de dirigir e determinar para onde iria. Não demorou muito
tempo para que deixasse a cidade em que vivia e chegou a pagar o pedágio para
entrar na próxima, e depois desembolsou mais ainda quando necessário para entrar nas outras. Essa odisséia teria o seu fim ao cair da tarde. O combustível
acabou. Entretanto a moção do seu organismo se manteve.
Ele não estava alucinado ou sob o efeito de substâncias. Tinha posse dos documentos necessários para provar quem era, além de uma boa quantia em dinheiro
armazenada em sua conta bancária, o que poderia inclusive lhe garantir uma noite em uma pensão, se assim quisesse. Vestido com roupas sociais, uma gravata
combinando com a camisa bem passada, sapatos lustrosos e a calça preta, poderia passar a impressão de um homem com pressa para algum compromisso, afinal começou a andar quando não podia mais contar com o carro. Porém da mesma forma, ainda não sabia para onde iria, apenas caminhava. Já era noite, a cidade em
que estava era bem movimentada: bares com música ao vivo, restaurantes abertos, pessoas de todos os tipos circulando e esse homem, nessa situação inexplicável.
Ele não se cansava, não sentia fome, não dizia uma só palavra. A madrugada chegou, as ruas começaram a esvaziar e os seus passos ecoavam ao se chocarem com o concreto. Não se sabe ao certo quantos quilômetros ele caminhou naquela noite, mas foi o suficiente para deixar a cidade em que estava e alcançar a zona verde. Seus sapatos não seriam mais úteis, então os tirou. Aqui devo adicionar uma informação sobre a geografia do país em que ele estava, pois sem ela
o que eu descreverei a seguir não terá sentido: a cidade em que ele estava é
localizada na parte litorânea. Em outras palavras, não demoraria muito para que alcançasse o oceano.
Em sua caminhada já podia sentir a maresia. Seu corpo estava em uma espécie de transe em que todas as funções estão perfeitamente normais, na verdade acima do normal. Ele não estava raciocinando ou com suas ações sob controle. Ele
também não agia por instinto. Era apenas um corpo que agia por conta própria
e não se sabe até hoje se foi algo sobrenatural. Poucos metros o separavam do
penhasco que era banhado pelas águas, e ao invés de cessar a sua caminhada, ele se pôs a correr como nunca antes. Na verdade, algo o pôs a correr.
Seus pés tocaram a ponta do penhasco antes de ficarem suspensos no ar. Assim
como todo o seu corpo. Antes estava correndo na maior velocidade que o seu corpo permitia, agora era como se o tempo tivesse parado, o vento forte da manhã fria no litoral havia cessado e, com o fim do transe, retomou a consciência. A reação foi mista, afinal é difícil descrever com exatidão como se sentir
quando se está acima das águas do mar, com o corpo suspenso no ar, como se houvesse um chão invisível logo abaixo dos pés. Com medo, disse a si mesmo para
não fazer movimentos bruscos, apenas arrastou os pés vagarosamente com o intuito de tentar sair daquela situação e voltar para a terra firme do penhasco o
mais rápido possível. Porém a calma tomou conta dele. Ele se sentia muito leve, no sentido físico do termo. Então pensou consigo: "parece que tenho umas quinhentas gramas...". Ao pensar isso, seu corpo desceu um pouco da posição em
que estava e no impulso do susto gritou: "EU PESO DEZ! DEZ!!". E o seu corpo
voltou a subir. E sim, ele possuía a habilidade de regular o próprio peso apenas pensando ou dizendo. Entretanto isso não afetava a sua forma forma física. Ele não sabia como estava fazendo aquilo, apenas fazia, apenas obteve a habilidade, sem mais. Tudo que estava nele, como as roupas e até mesmo a grama embaixo dos seus pés, também podiam ter o peso regulado por ele.
Ele se viu com a camisa e a calça rasgada, e não sabia como elas estavam assim pois não se lembrava de ter passado por uma parte densa da floresta nos arredores da cidade. Decidiu achar o caminho de casa e trocar de roupa. Simplesmente voltou a caminhar, porém pelo ar. Não conseguia ver mais diferença entre
o chão e o ar. Podia regular o peso do corpo de forma que pudesse caminhar sobre as partículas suspensas no ar, o que faz a sua nova habilidade atingir níveis subatômicos. Sentiu vontade de correr e não se conteve. Não havia mais sentido em dizer que sentia o vento, pois ele de certa forma fazia parte dele
agora.
De todas as emoções que ele poderia sentir, como êxtase ou prazer por estar fazendo algo além da compreensão humana, ele comparou esse momento a conseguir
andar de bicicleta pela primeira vez, apesar de nunca ter sido o seu sonho realizar algo assim. Após alguns quilômetros percorridos de volta para a cidade, dessa vez em bem menos tempo, parou de repente e pensou nas consequências de aparecer dessa forma a alguém, então simplesmente pensou no peso que tinha
antes disso tudo acontecer, cerca de setenta quilos, e voltou ao solo em segurança.
Ele se esgueirava pelas paredes dos prédios, de forma que ninguém conseguia percebê-lo, ou pelo menos dizer que ele estava se movimentando de acordo com as partículas do ambiente. Era tão rápido, que o fato dele estar em um lugar e
aparecer em outro em poucos instantes era comparável a uma folha que desliza
pelo chão com o bater da brisa. Seu corpo não ficava intangível ao regular o
peso, simplesmente era visível como qualquer outra pessoa, porém completamente imperceptível aos olhos por estes não serem capazes de acompanhar os seus movimentos.
Não demorou muito para chegar em seu carro estacionado. Não havia sido rebocado por estacionamento irregular e estava do mesmo jeito em que deixou. Com o
peso regulado ao normal, entrou no carro e girou a chave para dar partida. No
caminho de volta, pensou sobre essa estranhíssima habilidade e sobre o porquê
de conseguir fazer algo assim. Inicialmente pensou ser um super-poder, assim
como aqueles que se manifestam nos personagens das HQ's, mas não se tratava disso. Primeiramente porque não sentia nenhuma vontade de sair pelas metrópoles do seu país e combater os criminosos e os vilões, algo que não se aplica à
sua realidade. Toda essa narrativa sempre fez parte do mundo do entretenimento, e jamais um ser humano, pelo menos a partir do que sabia, havia manifestado tal habilidade e com certeza chocaria qualquer um que presenciasse essa manifestação.
Entretanto essa incerteza tomou conta do seu coração de tal forma, que ao chegar em sua casa após algumas horas dirigindo (e assim percebeu o quanto havia
se distanciado de sua cidade), apenas deitou em sua cama e começou a refletir
sobre como seria sua vida a partir dali. Ele era um homem trabalhador, assim
como muitos, e não imaginava que um dia a sua realidade mudaria tanto e que provavelmente não encontraria alguém que o entendesse. Como a sua habilidade não afetava sua forma física em nenhum aspecto, poderia muito bem voltar ao trabalho no dia seguinte e explicar a sua falta dos dois dias anteriores (afinal um dia ele dirigiu e caminhou sem rumo por horas e no outro estava atrasado
e refletindo). Mas de repente, não sentiu vontade de fazer mais nada disso.
Agora ele tinha uma habilidade que o tornava diferente demais das outras pessoas, uma tal que poderia fazê-lo "voar" de certa forma. Sentiu a liberdade correr pelas suas veias e simplemente decidiu abandonar a sua vida da forma que
ela era. Ele simplesmente saiu do seu apartamento, deixou tudo do jeito que estava e correu para a cobertura do prédio. Fechou os olhos, imaginou a menor
medida que podia para o seu peso e começou a escalar as partículas que via pela frente, em direção aos céus. Por ser leve em uma escala inimaginável, ao balançar as mãos no ar, sua mão tocava as partículas como se fossem pedras, afinal sua densidade não era muito maior que a de um átomo de nitrogênio ou oxigênio, podendo elevar o seu corpo ao fazer movimento de gancho com as mãos.
Foi então, nesse dia, que a humanidade presenciou pela primeira vez o que sempre foi impossivel para ela. A repercussão toda começou com um menino, na sua
inocência, que ao olhar para cima viu aquela cena completamente inusitada: havia um homem flutuando no ar e ascendendo aos céus sem usar equipamentos ou,
se podemos dizer assim, sem asas. O menino imediatamente gritou para todos em
volta: "TEM UM CARA VOANDO!!!". Como de costume algumas pessoas não deram atenção, porém aquelas que deram não podiam acreditar no que estavam vendo. Em poucos segundos após o início da comoção haviam celulares com as câmeras apontadas para cima, com o seus donos espantados, de olhos arregalados e sem muita
noção sobre como reagir diante daquela situação.
Nosso personagem já estava em uma altitude que não permitia que escutasse as
pessoas o chamando lá embaixo ou o som das sirenes das forças policiais que com certeza foram acionadas por alguém que não soube lidar com o que estava vendo e achou melhor chamar alguma autoridade. Ao olhar para cima, traçou como objetivo chegar às nuvens, entretanto teve que tomar cuidado com uma aeronave
se aproximando. O piloto da aeronave, um boeing para ser mais preciso, exergou uma silhueta humanóide no horizonte. Achou que estava imaginando coisas e não se atentou muito para isso.
Ele já podia ver a curvatura no horizonte. As nuvens não estavam tão carregadas quanto pela manhã e as menores já haviam ficado para trás. Continuou escalando até alcançar a primeira nuvem maior que exergasse. Ao chegar na parte de
baixo da nuvem, era como se tivesse chegado na boca de um poço fechado ao subir com a ajuda da água. Por mais que quisesse atravessar as partículas densas
da base da nuvem, não conseguia. Decidiu ajustar o seu peso mais uma vez, de
forma que pudesse deslocar as partículas da sua frente. Talvez por falta de controle, elevou demais o peso e começou a descer. A descida foi brusca, porém
no ápice da adrenalina ajustou o seu peso novamente. Quando conseguiu "perfurar" a nuvem, escalou por ela até conseguir exergar o azul do céu novamente.
Ele elevou o seu corpo e conseguir ajustar o seu peso de forma a ficar de pé.
A nuvem era bastante instável, mudando de forma a todo momento e movimentando-se de forma que dificultava bastante o ajuste do peso. Quando via que não conseguiria se manter, simplesmente mudava de nuvem.
Em poucas horas ele dominou o ajuste de acordo com o comportamento das nuvens. Sentou em uma delas, deixando suas pernas suspensas no ar. Olhou para baixo, sem vertigem. Não via nada em detalhes, distante de tudo e de todos, porém
ele tinha certeza que estava longe de sua cidade e quem sabe do seu país, pois em poucas horas de viagem pelas nuvens, tudo que via abaixo de si era a água do oceano.
A partir daquele dia, decidiu viver dessa forma, subindo aos céus para morar
nas nuvens e descendo à terra para se alimentar. Ele não sabia o impacto que
os registros de sua primeira ascensão causariam em todo mundo. O vídeo que foi
postado nas redes sociais viralizou como nenhum outro na história da internet. Em poucas horas, milhões, em poucos dias, bilhões. Hoje esse número de acessos e visualizações beira o incalculável, pois diferentemente de registros forjados, esse viria a ser confirmado pelo próprio protagonista do episódio.
Logo na primeira vez que desceu para comprar comida, as pessoas o reconheceram imediatamente, pois seu rosto ficou conhecido em todas as partes do mundo.
Seu apartamento fora revirado e sua vida completamente exposta: fotos, registros pessoais, nome, idade e tudo o que poderia extrair de lá. Ele chegou a ser
reverenciado como uma espécie de deus, porém fazia questão de negar quando isso acontecia. Seu relato do dia em que obteve as habilidades foi ouvido por todos e a humanidade teve que reconhecer que, entre os bilhões de habitantes do planeta terra, havia um que era capaz de subir aos céus e descer ao solo, da mesma forma que uma pessoa comum consegue respirar.